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Com a palavra a ciência

Vem ler comigo: conhecimento e desejo, intelectualidade e afeto, no livro Bússola

Eu li esse livro algumas vezes, pelo menos três. Sinto-me muito íntima de seu autor, Mathias Enard,  que nasceu na França em 1972, estudou árabe e persa e viveu longos períodos no oriente médio. Ele  estudou orientalismo alemão com uma bolsa de estudos do Programa de Cultura da mesma  instituição que financiou meu doutorado em Berlim, o Deutscher Akademischer Austauschdienst  (DAAD). Seu livro Bússola vencedor do prêmio Goncourt, é um olhar sofisticado sobre as trocas  culturais, guerras e conflitos entre o Oriente Médio e a Europa no século 19. O livro é também uma  visitação à agitada cena intelectual e artística desses dois mundos. Bússola tece uma crítica ao  orientalismo tradicional inventado pelos europeus, e todos os estereótipos e fantasias sobre o Oriente  que daí surgiram para justificar o colonialismo e o apagamento cultural no campo das artes, da  ciência e do yoga. Mathias desafia a visão simplista de uma Europa que apenas contempla o Oriente  como um objeto distante e exótico. Ao retratar figuras históricas como músicos, escritores e  exploradores que viveram para além das fronteiras do Danúbio, sua obra destaca a maneira pela qual  o Oriente funcionou para o ocidente como uma especio de espaço de impiedoso confronto cultural,  inspiração e loucura, ao mesmo tempo. 

O LIVRO 

Uma noite sem fim, sem sono, sem trégua para Franz Ritter, um musicólogo vienense, encarando sua  vida e suas experiências de pesquisa e as amorosas. A trama se desenrola como um fluxo de  consciência, onde Franz se perde em lembranças e reflexões sobre sua carreira, sua paixão não  correspondida por Sarah, uma mulher culta fascinada pelo oriente médio, especificamente pela  influência da cultura islâmica na música e na arte ocidentais.  

Sarah representa um elo entre o conhecimento e o desejo, a intelectualidade e o afeto. Ela simboliza,  principalmente, o abismo e a inacessibilidade não apenas no plano romântico, mas também em  termos de compreensão, do oriente. A relação deles encapsula o tema central do romance: o fascínio  por algo que parece eternamente fora de alcance, seja uma pessoa ou uma cultura.  

O livro explora de forma rica e detalhada a história das interações culturais entre Europa e o mundo  islâmico, presenteado o leitor com fatos reais de figuras europeias importantes como Goethe,  Wagner, Nietzsche, Debussy, Flaubert, Balzac, Liszt, Gertrude Bell, Rilke e os naturalistas europeus.  Os místicos e escritores orientais do século 10 e 11, como Khayyam, Rumi, Al-Farabi, Nizame e  Nishapur estão documentados de forma bela e veemente através de suas poesias e cartas,  revelando para além de seus êxtases místicos, a vida como ela é: dores, moléstias e dúvidas.  

Franz evoca suas viagens por cidades como Istambul, Damasco e Teerã, revelando as complexas e  muitas vezes esquecidas trocas culturais entre as duas regiões.  

A bússola no título serve, num primeiro e óbvio olhar, como metáfora para a orientação e  desorientação de Franz tanto em termos físicos quanto emocionais, enquanto ele lida com questões  pessoais e intelectuais profundas. Mas ela é também a que se incrusta no tapete de orações  muçulmano, permitindo ao crente localizar no seu imaginário cósmico Meca.  

É uma obra densa, repleta de referências históricas e culturais que explora o diálogo entre  civilizações, ao mesmo tempo em que reflete sobre a identidade, o amor e a memória. O livro resgata  a complexidade do diálogo intercultural e sugere que a verdadeira compreensão entre Oriente e  Ocidente exige reconhecer a influência mútua, questionando os clichês e as hierarquias criadas pelo  orientalismo clássico, desconstruindo os preconceitos e nos convidando para ir fundo na história  cultural da humanidade, para entendê-la como uma pulsão nunca subjugada, a despeito de todas as  opressões.  

PÁGINA 234 – UMA PASSAGEM – ÀS 3:45 DA MANHà 

Tudo se apaga. Tudo escapa. Avançamos por terrenos novos. Tudo foge. É preciso  reconhecer, caro Thomas Mann, que as suas páginas sobre a 32ª sonata de Beethoven são  perfeitas para provocar a inveja dos musicólogos. Aquele conferencista gago, Kretzschmar,  que toca piano berrando seus comentários para ultrapassar os próprios fortíssimi. Que  personagem. Um gago para falar de um surdo. Por que não há terceiro movimento na opus 3? Eu gostaria de apresentar minha própria teoria. Esse famoso terceiro movimento está  presente indiretamente. Por sua ausência. Está nos céus, no silêncio, no futuro. Já que se  espera por esse terceiro movimento, ele quebra a dualidade do enfrentamento das duas  primeiras partes. Seria um movimento lento. Lento, tão lento ou tão rápido que perdura numa  tensão infinita.(…) O duplo, o ambíguo, o turvo, o fugidio. A fuga. Esse falso círculo, esse  impossível retorno é inscrito pelo próprio Beethoven bem no início da partitura, no maestoso que acabamos de ouvir. A ilusão da tonalidade esperada, a inutilidade das esperanças  humanas, tão facilmente enganadas pelo destino. O que acreditamos ouvir, o que  acreditamos esperar. A esperança majestosa da ressurreição, do amor, do consolo, é seguida  apenas pelo silêncio. Não há terceiro movimento. É um terror, não é? A arte e as alegrias, os  prazeres e os sofrimentos dos homens ecoam no vazio. Todas essas coisas a que nos  apegamos, a fuga, a sonata, tudo isso é frágil, dissolvido pelo tempo. Escute esse final de  primeiro movimento, o gênio dessa coda que termina no ar, suspensa depois do longo  caminho harmônico até o espaço entre os dois movimentos é incerto. Da fuga à variação, do  fugidio à evolução, A pequena ária prossegue, adagio molto, num ritmo dos mais  surpreendentes, a marcha para a simplicidade do nada. Ilusão, de novo, essa Essência; não a  descobrimos na variação e nem a captamos pela fuga. Acreditamos ser tocados pela carícia  do amor, e nos vemos descendo uma escada, de pernas para o ar. Uma escada paradoxal  que leva apenas a seu ponto de partida – nem ao paraíso nem ao inferno. O gênio dessas  variações, o senhor certamente convirá, Sr. Mann, também reside nas suas transições. E aí  que se encontra a vida, a vida frágil, no vínculo entre todas as coisas. A beleza é a  passagem, a transformação, todas as artimanhas do ser vivo. Essa sonata é viva justamente  porque passa da fuga à variação e desemboca no nada. “O que há na amêndoa? O nada. É o  nada que há na amêndoa e ali se mantém.” Claro que o senhor não pode conhecer esses  versos de Paul Celan, Sr. Mann, pois já tinha morrido quando eles foram publicados. 

“Um nada 

fomos, somos nós, continuaremos 

a ser o nada que floresce 

a rosa do nada, a rosa 

de ninguém.” 

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