Nosso nascimento é algo impressionante sob vários pontos de vista, mas um deles sempre me põe a sorrir: Um bebê é literalmente o milagre da reciclagem! Você já parou pra pensar que seu corpo foi e é construído e reconstruído por moléculas disponíveis que vagam pelo cosmos? Nada é originalmente seu, tudo é reciclado! Essa troca molecular é intensa e por toda a vida, basta olhar nossos tecidos: células brancas do sangue se renovam em um dia, o revestimento interno do estômago é renovado em 3 dias, nosso esqueleto é renovado em 10 anos, o fígado em 6 meses, e por aí vai. Tudo em nós está em troca e trânsito intensos. Agora, segundo a idéia vulgar que se popularizou, nós nascemos com certas características emocionais e comportamentais que são herdadas (verdade) e por isso mesmo nosso temperamento jamais se altera (inverdade). Existem pessoas que tendem a cometer os mesmos erros nas suas repetidas escolhas e elas sempre se desculpam dizendo que o fazem daquela maneira, porque nasceram assim, porque são assim e pronto. Essas pessoas cristalizam um tipo de assinatura emocional no mundo e acham que seria impossível mudar. Você é minha convidada e meu convidado para rever e desconstruir essa crença, porque tudo em nós é passível de mudança, principalmente nossa assinatura emocional, e a neurologia prova isso! Vamos olhar de perto?
Eu acho que a melhor e mais simples maneira de definir uma assinatura emocional é pensar que ela representa a maneira através da qual você se expressa no mundo. Ela é a maneira como as outras pessoas te vêem e te reconhecem. A assinatura emocional é construída sob várias influências, tanto positivas quanto negativas, seja na nossa primeira infância, seja sob o peso de traumas repetidos, ou pelas experiências que nos fizeram cair no mundo e ir muito além de nossos quintais.
Quando nascemos, nós herdamos de fato características dos nossos pais e familiares que formam um arcabouço da nossa resposta emocional e comportamental, quero dizer nosso temperamento. Mas, é no meio e em meio a tudo que somos expostos, a tudo que sofremos e aprendemos, às batalhas ganhas e perdidas, aos compromissos assumidos e levados até o fim, que nossa assinatura emocional ganha contornos novos e independentes das características herdadas.
Vamos a um exemplo meu. Eu herdei sem dúvida um temperamento vigoroso, cheio de fogo, animado, impetuoso, bem humorado, mas também muito impaciente e irritadiço. Normalmente, a lentidão do outro é meu grande desafio, o que me irrita e me faz reagir com impaciência. Mas olha só, como professora e terapeuta isso absolutamente não serve pra nada, então, eu tive que fazer uma escolha e ir além dessa característica herdada. A questão que eu intuitivamente me coloquei foi: Como eu poderia ajudar meus estudantes e pacientes se eu não desse a todos tempo, pacientemente aguardá-los e guardá-los no processo de aprendizado ou da regeneração? Para mim a escolha era óbvia – ser paciente e dar tempo ao tempo. Isso me posicionou muito além da minha impaciência, e me fez incorporar um valor que se tornou parte de mim. Não que a impaciência tenha desaparecido de vez. Muito pelo contrário, ela está lá ainda bem forte, mas ela não se manifesta de modo instintivo.
Na minha vida pessoal, por inúmeras vezes testemunhei a conquista da minha paciência em situações de grande importância, nas quais minha impaciência ficou recolhida e sem problema algum. Como isso pode ser possível? Para mim funcionou quando eu fiz da paciência um valor sobre o qual eu ancorei minha decisão. Eu assumi um compromisso com esse valor e isso foi muito importante na minha vida e na vida de muitas pessoas com quem eu me relaciono. Eu posso dizer a você que, por várias vezes, já esperei 10, 15 ou mesmo 30 anos para reconectar pontas que se separaram em relacionamentos que foram importantes para mim. Embora minha característica tenha sido herdada dos genes de meus ancestrais, ela não se perpetuou em mim, e principalmente ela não me domina. Por valorizar minhas relações sociais, de trabalho e as do amor, me convoco à mudança da minha assinatura emocional continuamente, e assim minha assinatura emocional vem ganhando novas cores e qualidades!
Para nós humanos as emoções são fundamentais e até para tomar uma decisão racional elas são imprescindíveis. Em qualquer situação, independente do risco que ela contenha, nossas decisões se iniciam sempre no cérebro emocional. Este é o ponto de partida da primeira trilha neural e nesta estação neuropsíquica, as emoções são responsáveis por nossa proteção fazendo com que nosso cérebro antecipe o futuro e reforce sua prioridade que é a de nos proteger.
Daí em diante entra em atividade um mecanismo que o neurologista português Antonio Damasio denominou “marcador somático”. Este é o ponto de chegada da primeira trilha neural. O objetivo desta estação é o de poupar tempo e energia e para isso regiões deste cérebro avaliam a situação com base no impacto emocional das experiencias semelhantes do passado, e assim, o raciocínio e a tomada de decisão são guiados pela avaliação emocional das suas consequências (Gazzaniga, Heatherton e Halpern, 2018).
Existe ainda uma segunda trilha neural, bem mais complexa e que envolve processos neuropsíquicos superiores. O cérebro emocional fez seu papel num primeiro momento que é avaliar o impacto emocional e as consequências de uma situação com base nos registros de dor que temos, mas em vez de ficar por aqui, a gente caminha por esta nova trilha que nos leva ao território do cérebro racional. Ah gente, a história aqui é bem diferente das duas estações anteriores da primeira trilha. A estação do cérebro racional valoriza a experiência e não necessariamente se inibe diante de informações conflitantes e dolorosas que surgem de nossa memória emocional. Para fluir na
experiência precisamos permitir o desconhecido, que é cheio de riscos e possibilidades. Nesta estação o cérebro busca superar bloqueios emocionais para permitir o fluxo e a experiência do desconhecido.
A maioria das pessoas que se deixam amarrar em suas características herdadas, e se conformam com a modelagem que elas oferecem, o chamado temperamento, só se permitem experimentar algo até onde é conhecido e seguro. Quando um registro de memória dolorosa é ativado, muitos reagem com um comportamento de defesa, o que reforça sempre o padrão que as aprisiona.
Por exemplo, uma pessoa que herdou a raiva como característica e ao se lançar numa tarefa experimenta uma crítica dura, logo vai reagir de modo impulsivo se defendendo com agressividade ou com indiferença (atacar ou fugir). Quando ela age impulsivamente, a trilha que daria a ela recursos racionais para avaliar melhor a situação e encontrar uma boa resposta, não é percorrida. Ao utilizar repetidamente apenas a trilha da resposta emocional, o seu temperamento raivoso tende a ser visto como ótimo recurso de defesa e por ser útil, aquele comportamento se torna um hábito. Quanto mais ela utiliza esta trilha neuropsíquica, mais ela será pavimentada e se colocará visível e segura para novas situações que surgirem no futuro. Na neurologia chamamos isso de Teoria Hebbiana – “neurons that fire together, wire together“ (Neurônios que disparam juntos, permanecem juntos). Em outras palavras, quanto mais habituais e instintivos formos, mais usado será o cérebro emocional porque sua trilha ficará bem iluminada e disponível sempre.
Gente, pára com isso! Nós precisamos trilhar outros caminhos dentro do cérebro! Isso é possível e é feito em segurança utilizando a atenção. Sim, você ouviu bem, a atenção. O neurologista Daniel Siegel coloca assim “Where attention goes, neural firing flows, and neural connexion grows” (Onde a atenção vai, o disparo neural flui e a conexão neural cresce). Vamos colocar isso num plano bem prático com o exemplo anterior:
Se aquela pessoa que herdou a raiva como uma característica de sua personalidade e que reage de modo raivoso ao experimentar uma situação desafiadora puder, justamente no momento em que a raiva a toma inteira, simplesmente observar e reconhecer aquela emoção, ela já saiu da impulsividade. Neste ínfimo hiato de tempo entre sentir a raiva e reagir, ela se controla e escolhe se comportar de maneira diferente. Para fazer isso ela precisou colocar sua atenção também no resgate de alguns valores humanos importantes, como a empatia, o respeito e o destemor. Maravilha, quando ela é capaz de sentir a si mesma e fazer uma escolha nova, seus pés neuropsíquicos já começam uma caminhada na trilha que a levará do cérebro emocional para dentro da segunda trilha em direção ao cérebro racional. Ao chegar nesta ditosa estação que prioriza o fluir na experiencia, ela terá feito algumas coisas muito importantes. Primeiro, ela controlou a expressão de sua característica herdada que a faz ter um comportamento explosivo. Ela também foi capaz de introduzir valores maiores que seu próprio temperamento genético, e através disso foi capaz de uma atitude nova que expressa compromisso, inteligência e maturidade. Ela mudou e caminhou por um território neural novo. A trilha porem, é ainda pouco usada e por ora é apenas uma tênue marcação neste território, uma marcação quase imperceptível. Mas, o caminhar por ela outras vezes fará com que essa trilha se fortaleça e se coloque visível em futuros cenários. Se esforçar para voltar a esse trilha mais vezes é que fará com que ela se torne visível na cartografia de nosso cérebro nos deixando a opção de algo novo frente à tão surrada primeira trilha.
Acredito que o maior obstáculo que temos é uma questão de modelo mental, a velha crença, e talvez seja necessário conversarmos também sobre nossa luta entre emoção e razão. Isso fica para a próxima conversa.