Texto por Gursangat MD, M.Sc, PhD Faculdade Medicina Charité Berlim
Meu trabalho esteve sempre ligado à investigação das condições sociais e econômicas que emolduram a vida das pessoas e o peso disso sobre o adoecimento delas. Na área da saúde clínica e coletiva, meu território profissional desde 1982, compreender claramente como uma doença avança sobre as pessoas permite tanto mitigar o adoecimento quanto preveni-lo, e isso faz toda diferença na vida delas. Eu tinha 23 anos quando comecei a trabalhar na área da saúde coletiva, e com o olhar amadurecido que essa experiência me concede, vejo hoje um movimento preocupante do neoliberalismo adentrando o trabalho científico e clínico, utilizando os métodos da prevenção e do autocuidado para uma causa própria, e totalmente contrária aos princípios da saúde. Eu gostaria de refletir um pouco com você sobre as nuances desta situação e falarmos sobre causas de doenças e sua prevenção, porque estar vivo hoje é revolucionário o suficiente!
Pode parecer impossível para muitas pessoas no Brasil pensar a vida, o trabalho, ou mesmo criar suas famílias em um outro modelo econômico que não seja o neoliberal. Tendo sido introduzido no pais no início dos anos 90, o neoliberalismo teve tempo de se aproximar de nós e influenciar até mesmo nosso modo de ver o mundo. Mas, tem havido revisões mundo afora. Outros países capitalistas como a Suécia a Islândia, a Grécia e o Canada já reformularam seus modelos antes neoliberais. No Brasil, nunca se falou tanto das desastrosas consequências do neoliberalismo e, curiosamente, grande parte dessas importantes reflexões surgiram em campos diversos e diferentes da economia, como os da filosofia e da saúde. Isso tem produzido farto conhecimento sobre como as políticas neoliberais influenciam a maneira como pensamos a vida, particularmente sobre saúde e trabalho.
O princípio fundador do neoliberalismo dá ao mercado status de soberano para resolver os problemas econômicos, e para isso duas coisas precisam ser feitas. Primeiro é preciso transferir a responsabilidade do sucesso e fracasso econômico, bem como o da saúde para os indivíduos, e segundo, minimizar a intervenção do governo nesses campos. Com essas premissas, esse modelo prometeu muito crescimento econômico, e pressupôs que isso alavancaria melhores condições de vida e de saúde para as pessoas. Essa promessa não foi cumprida. O que se vê hoje é muita desigualdade, doenças, violência e instabilidade. A nossa sociedade não ficou mais justa e nem mais democrática com o neoliberalismo, pelo contrário.
Para se ter uma dimensão do fracasso desse modelo, basta dar uma olhada nas disparidades entre pobres e ricos no Brasil. Segundo levantamento da Oxfam de 2024, divulgado em Davos na Suíça, 63% da riqueza nacional está nas mãos de apenas 1% da população. Meros 0,01% da população possui 27% dos ativos financeiros, imagine isso! Os nossos super-ricos são homens e brancos, o que reflete, para além da desigualdade económica, também a racial e de gênero. O pais tem falhado horrivelmente com a maioria das pessoas que estão na pobreza e abandonadas. Não é possível negar que algo deu errado, e muito errado.
O sistema neoliberal também criou desafios complicados ao misturar saúde com produtividade. Como o neoliberalismo reduz o financiamento público estimulando a privatização de serviços e transferindo a responsabilidade dos cuidados de saúde para a pessoa, o que temos é um menor acesso a serviços de qualidade, maior desigualdade no atendimento, e uma grande piora das condições de saúde para populações vulneráveis.
A ideia de que o mercado resolve tudo frequentemente ignora as necessidades de saúde coletiva, o que aumenta ainda mais o risco de doenças, além de sobrecarregar os indivíduos com os altos custos da gestão de sua própria saúde.
Nada melhor do que o modelo norteamericano para ver a extensão do vies negativo neoliberal no sistema de saúde. Por lá, o acesso aos cuidados com a saúde depende da capacidade de pagar pelo serviço. Muitos americanos enfrentam dívidas enormes com suas despesas médicas, e por isso muitos evitam buscar tratamento, o que piora o adoecimento. Além disso, o sistema de saúde americano não incentiva a prevenção ou o cuidado integral, priorizando a intervenção médica cara, o que resulta em cuidados fragmentados e menos eficazes.
Nosso modelo de saúde tem resistido bravamente apesar das tentativas de desmontar a parte pública dele. O sistema brasileiro de saúde é híbrido, combinando o exemplar Sistema Único de Saúde (SUS) com o setor privado. O SUS é a principal estrutura de saúde pública no Brasil, sendo universal, gratuito e acessível a todos os cidadãos. Outra particularidade do SUS é que ele busca fornecer cuidado integral, oferecendo deste prevenção e promoção da saúde até tratamentos complexos e de alta tecnologia. O SUS é um legado precioso no campo da saúde, e por isso precisa ser protegido e melhorado.
Não há como negar que, no neoliberalismo, as pessoas são frequentemente reduzidas a meras engrenagens de uma vasta máquina econômica, onde seu valor é medido por sua capacidade de se sobressair e se superar, mantendo o motor da economia em movimento. Nessa lógica, a saúde não é vista como um direito intrínseco ou um aspecto fundamental do bem-estar humano, mas como um instrumento a serviço da produtividade. Em outras palavras, a saúde e o cuidado com o corpo e a mente tornam-se uma obrigação para sustentar a eficiência pessoal econômica em vez de ser um caminho para uma vida plena e digna, que uma economia equânime propiciaria.
Quando se vive sob a premissa de que a responsabilidade do cuidado com a saúde é exclusivamente pessoal, normalizamos trabalhar mesmo muito doentes. Ou porque temos medo de perder o emprego ou por insegurança financeira, nos forçamos a uma carga tóxica de trabalho com quase nenhum tempo livre para simplesmente relaxar. Sem contar que, a pressão para ser produtivo sempre agravará os problemas de saúde mental, tirando o sono e aumentando o estresse. Isso no coloca num ciclo vicioso porque o medo de parecer menos produtivo faz com que muitas pessoas evitem sequer buscar ajuda, o que só piora a situação.
Precisamos de recriar duas coisas: o modelo econômico e a cultura que valorize a qualidade de vida e não apenas a produtividade. No fim das contas, o que importa mesmo é saber que temos uma estrutura social e econômica que coloque a saúde e a dignidade das pessoas no primeiro plano para que possamos ter uma sociedade justa e funcional.
A prevenção e o auto-cuidado são bem importantes nós que estamos há anos no ramo da saúde. Entretanto, embora a prevenção e o auto-cuidado sejam campos coronais da saúde, eles vêm sofrendo julgamentos impiedosos por parte daqueles que criticam o modelo econômico vigente.
A crítica necessária ao neoliberalismo não tem poupado em nada as práticas mente-corpo e as práticas integrativas e preventivas da saúde, como por exemplo a medicina do estilo de vida, a medicina integrativa, yoga e a meditação dentre outras modalidades, e a maneira indiferenciada que isso vem sendo feito me parece um problema. Acho leviano e injusto generalizar que os profissionais dessas áreas estariam nada mais do que endossando o falido estilo neoliberal e usando acriticamente esses recursos para maquiar cuidados com saúde com o objetivo único de restaurar minimamente o sujeito e devolvê-lo rapidamente para o sistema que o destrói.
Parte dessa crítica é importante, haja vista que as práticas mente e corpo, como yoga, meditação, massagem, e o campo médico que trata da saúde integral e do estilo de vida, como alimentação, sono, estresse, atividade física dentre outros, muitas vezes entra no jogo do mercado. O apelo por vender conhecimento como mero produto para melhorar rapidamente a performance da pessoa é grande demais. Nas redes sociais vende-se todo tipo de solução mágica, imediata e universalizada para o consumidor. Tem produto para emagrecer, tonificar, melhorar a cognição, melhorar o humor, o desempenho cerebral, sair da depressão, focar, embelezar, perder rugas, ganhar vigor, tudo para que, no final, o consumidor seja capaz de protagonizar aquele modelo perfeito de pessoa, de alta performance, apta a fazer a diferença, de conquistar nada menos do que o mundo!. O alvo desse trabalho é talhar a pessoa para gerenciar, liderar e conduzir seu time ao sucesso, ou esculpi-la para se vender melhor enquanto ser humano. O corpo e a mente enquanto experiência humana ficam reduzidos a um modelo de mercado, um produto vendável e sedutor.
Mas tem gente que faz diferente, e fazer de uma outra maneira demanda muito tempo, doação e paciência porque é necessário criar uma relação com a pessoa do outro lado que busca cuidados com a saúde. Essa relação precisa ser humana, direta, com trocas interpessoais que permitam reflexões profundas, ajustes individualizados para se alcançar mudanças concretas. Mudanças não apenas de hábitos de vida mas de visão de mundo. Nenhum sistema médico, seja ele particular ou público, pode abrir mão desse tipo da relação, do olhar, da presença que são, no final das contas, o que mobiliza e ascende uma chama de esperança que abre na pessoa as comportas da transformação.
Realmente, ver todo o conhecimento da prevenção e do auto-cuidado serem vulgarizado nas mãos de coaches em suas redes sociais é profundamente frustrante e acintoso.
Existem profissionais que trabalham oferecendo uma perspectiva honesta dos processos que envolvem o adoecimento e a saúde, mapeando claramente a realidade e as condições que influenciam diretamente a qualidade de vida das pessoas. Esses profissionais corajosos vão além quando se trata de ajudar as pessoas a compreenderem e recuperarem a ascendência sobre seus corpos e mentes. Porque, para fazer isso é fundamental que o profissional se posicione com franqueza e promova uma reflexão sobre o que são, de fato, as interações causais que destroem a saúde e nos colocam propensos a adoecer. Eu me incluo entre essas pessoas sérias e dedicadas à saúde, e posso dizer que é preciso ter muita coragem mesmo, porque parte desse exercício profissional esbarra desagradando enormemente as grandes corporações médicas e a industria.
Mas, o compromisso com a profissão e o respeito ao outro é tanto que seguimos oferecendo o que há de mais novo e seguro no campo do estilo de vida para que as pessoas se fortaleçam e se motivem a se cuidarem e, ao mesmo tempo, buscarem caminhos organizados que as ajudem a mudar o cenário adoecedor que as permeia. Nunca é suficiente falar apenas das causas das doenças e como preveni-las, sejam elas metabólicas, oncológicas, neurais, imunológicas, cardíacas, pulmonares e mentais, precisamos ir além no sentido de mudarmos o contexto adoecedor. Ninguém ficará muito tempo feliz e curado se o meio que a envolve for adoecedor e tóxico. Por isso, o trabalho com a saúde requer uma visão muito mais ampla e coletiva.
Eu sempre vou insistir em lembrar a todos sobre o fato de que, as doenças que matam mais de 80% da população brasileira são evitáveis! Suas causas não estão ligadas a bactérias ou virus. As causas dessas doenças não-transmissíveis são bem estudadas e estão diretamente relacionadas ao modo de vida que somos submetidos ou subjugados a ter. Esse modo de vida é tanto individual quanto coletivo. Importante nos lembrarmos que somos, de fato, enormemente influenciados pelo meio. O coletivo importa!
Poder ter uma vida vibrante é, em si, muito revolucionário. Vamos continuar falando de métodos preventivos e cuidados com o corpo e a mente, tentando entender as causas complexas dos adoecimentos, buscando ampliar nossa compreensão e escolher melhor. Não se trata apenas de um corpo e de uma mente. Estamos falando de todos os corpos e mentes que devem viver muito para mudar o que está nos tirando a vida e nos entregando doença e morte precoce.