Imagine que você é a única pessoa viva no seu entorno, depois de uma grande catástrofe. Você se encontra isolada e perdida, numa região que se tornou inóspita, sendo você a única pessoa que, de fato, pode contar. Depois do choque, você se coloca a pensar sobre a situação e a cogitar formas de lidar com ela.
Cogitar, pensar é exatamente a origem da palavra cuidado. Sim, vem do latim, e quer dizer refletir sobre uma determinada situação. Na situação imaginada, você daria início ao ato de se cuidar simplesmente porque não quer morrer. Você elabora, do nada, um plano de sobrevivência. A força do cuidado faz parte das entranhas humanas, ela se manifesta com toda fúria para preservar a vida.
Por que buscar uma forma de sobreviver quando tudo indica que as chances de viver são poucas? Por que não simplesmente morrer? Porque acreditamos, para além da razão, no ganho que teremos no minuto seguinte, no que ainda temos a viver e experimentar num futuro imediato. O desejo alimenta o ímpeto do cuidado porque há uma pulsão de vida em nós.
Se a gente olhar para a organização social humana há 800.000 anos, fica óbvio que, mesmo para aquela forma social rudimentar, sem trocas de cuidados não teríamos sobrevivido. Os primeiros humanos se reuniam em torno de fogueiras para socializar, encontrar conforto e calor, compartilhar alimentos e informações, cuidar dos velhos e crianças, e se proteger de predadores. Nós precisamos um dos outros, essencialmente, porque não queremos morrer precocemente.
Mas, o que é o cuidado? Eu gosto de como Tronto e Fisher o definem: uma atividade da espécie que inclui tudo o que fazemos para manter, conter e reparar nosso mundo, nossos corpos e ambiente, para que possamos viver nele da melhor forma possível em uma complexa rede de sustentação da vida. Nas nossas sociedades industrializadas e altamente tecnológicas, por razões convergentes entre os campos da religião, economia e política, o cuidado se deslocou do coletivo para o estritamente individual, fazendo do autocuidado a ordem obsessiva mais fundamental, que acaba por destruir a própria rede de nossa sustentação.
Vejam vocês, numa busca rápida no instagram, eu encontrei para #selfcare 76,5 milhões de visualizações. Quem não quer se sentir melhor, corpo-mente e alma? Só que a prática desse autocuidado não é para que você em sua rede se cure, relaxe, desintoxique. Não. Ela é vendida como o único recurso de normalizar alguns ideais de felicidade, como a de beleza, de corpo, de desempenho, de riqueza. O pensamento individualista e meritocrático do neoliberalismo e das igrejas da prosperidade, fortemente disseminado na estrutura de nossas sociedades, higieniza a prática do cuidado que era antes social, coletivo, integrado à vida, à natureza, para transformá-la em um produto de uso pessoal para o sucesso estritamente pessoal.
Por que será que chegamos a esse ponto? a teórica cultural Lauren Berlant nos conta a triste história da normatividade atual: um conjunto de promessas, fantasias e expectativas dominantes da boa vida, as quais nos ligamos com extremo otimismo. Isso nos fez apegar a modelos convencionais estressantes de vida que nunca nos dão “dinheiro suficiente, nunca amor suficiente e quase nenhum descanso”.
Para realizar esse destino imaginário, fantástico, utilizamos práticas invasivas e generalizadas de auto-branding que causam cada vez mais alienação, individualismo, narcisismo, vício no trabalho, fadiga digital e escassez emocional. Quando você se torna excessivamente autorreferencial e exageradamente o seu auto-empresário, você caminha para uma auto-
agressão sistêmica que te afasta da rede de cuidado e sustentação. Quando você permite que sua consciência se torne o objeto de uma exploração comercial sistemática, o amor-próprio é destruído. Sem o amor por si nada mais existe ou faz sentido.
O adoecimento coletivo, a insanidade, a degradação do meio ambiente, a pobreza, a fome, a dor e a morte orquestrada do outro não protegem ninguém, nem mesmo os que vivem numa condição peculiar e anti-humana, na qual a consciência de mundo se resume a uma bolha fantasiosa de felicidade.
Será que a felicidade sozinha é capaz de nos proteger? Audre Lorde nos alerta que não. “olhar para o lado positivo das coisas é um eufemismo usado para obscurecer certas realidades da vida, cuja consideração aberta pode ser ameaçadora para o status quo. (…) Busquemos ‘alegria’ em vez de comida, ar puro de verdade e um futuro mais saudável em uma terra habitável! A ideia da felicidade sozinha sendo capaz de nos proteger, é o resultado da loucura do lucro”.
Há saídas? Claro, há sim. Muitos estudiosos desse problema acreditam que implementar práticas de conscientização que vão produzir uma nova compaixão e novas formas de cuidado, para os outros e para nós mesmos.
Nós, indivíduos performativos neoliberais, precisamos nos aproximar de nós mesmos e dos outros. Precisamos politizar a pobreza do tempo, a precariedade do trabalho e a autopromoção compulsiva que, no fim das contas, nos destroem. Precisamos recriar uma temporalidade que permite respirar e trocar, que é conectiva e coletiva, capaz de restaurar o estar para outro e o autocuidado, e de interromper essa corrida histérica de realização, porque nela corremos contra nós mesmos.
Precisamos cogitar novas estratégias contra a crença dominante de que não há alternativa econômica ao neoliberalismo, esse que faz um ataque sistemático e contínuo à vida dos trabalhadores e, junto ao ciberespaço, só intensificou a cultura de dessocialização, solidão e alienação. Coisas simples podem ser feitas que terão efeito sistêmico como, por exemplo, conversar com os colegas de trabalho e amigos sobre como nos sentimos, porque isso reintroduzirá o cuidado e o afeto em espaços onde deveríamos ser competitivos, isolados ou perfeitos. Usar as mídias sociais de modo pro-ativo e não reativo, traduzido na qualidade de conteúdos que compartilhamos para recriar uma rede de apoio emocional em tempos difíceis.
Parece simples demais, e é. Precisamos começar do simples, ganhar confiança e crescer organicamente. É isso, precisamos retomar aquele olhar do cuidado como rede, sustentação, esperança, gentileza, vida coletiva! Já passamos tempo suficiente neste últimos 60 anos para termos a certeza de que o autocuidado como praticado é uma técnica de autodestruição.