O Coração do Mundo, escrito por Peter Frankopan, é um livro audacioso e profundo, um antídoto às visões eurocêntricas da história mundial. O coração do mundo jamais esteve na Europa, nem antes, nem agora. O mundo sempre pulsou através das artérias que partiam da Ásia Central para a Europa e África, atravessando as estepes da Eurasia e o Levante. As rotas da seda. Essa região nunca perdeu sua relevância, e é ainda hoje definidora da estrutura política e econômica das sociedades mundo afora. Esta obra explora como essas rotas não só impulsionaram o comércio, mas também influenciaram o desenvolvimento da cultura, das civilizações e foram palco do nascimento das grandes religiões como o judaísmo, cristianismo, islamismo, budismo e hinduísmo e outras grandes crenças que ali surgiram e se encontraram. Esse livro é uma obra grandiosa com detalhes revelados destemidamente por esse magnífico historiador da Universidade de Oxford, que nos traz um pouco de esperança ao olhar hoje para o mundo e suas crises. A história e suas voltas, a vida que insiste em ressurgir das ruínas.
Eu tenho uma fascinação por história e geografia, mas não da maneira como elas me foram ensinadas na escola. Embora não tenha sido nada sistemático, devo ao meu avô materno esse gosto. Ele me chamava a atenção para aspectos, como dizia ele, “nunca revelados” em sala de aula e procurava me mostrar outros ângulos e, talvez, para que através deles, eu pudesse encontrar fragmentos da história dos vencidos que jamais era contada nos livros da época. Ele queria que eu aprendesse a investigar, e isso realmente foi se tornando parte de mim, e hoje, a leitura de um livro da
qualidade como o Coração do Mundo, me anima e me trás uma compreensão que renova minha esperança com o mundo.
Tudo que sabemos sobre arte, religião, filosofia e até o direito tem seu rizoma limitado ao paredão geográfico que se ergue das profundezas do solo aos céus que constituem a europa ocidental. Mais ou menos assim: a Grécia antiga cria Roma, que cria a europa cristã, que cria o renascimento, e este gera o Iluminismo que, finalmente, botou no mundo a democracia política e a revolução industrial. E a partir daí, como Frankopan diz tão bem citando o antropólogo Eric Wolf, o cruzamento da indústria com a democracia vai dar vida aos Estados Unidos, que, por sua vez, dão corpo ao direito à liberdade e a busca da felicidade.
Ainda hoje, por exemplo, no meu grupo pequeno de estudos de filosofia e psicanálise, um bálsamo diga-se de passagem, o máximo que conseguimos retroceder no tempo para entender como uma pessoa se constitui, como o sujeito sofre influência de uma certa visão de mundo, como essa visão de mundo molda a cultura, dentre outras coisas, é justamente até a Grécia antiga. Ponto, nada mais.
E o resto do mundo? E as civilizações que existiram além da fronteira eurocêntrica? E a Pérsia, a Mesopotâmia, as estepes Russas, a Mongolia, o Afeganistão, a Índia e a China, todas com suas cidades magníficas, suntuosas, cheias de bibliotecas, observatórios, lugares de cultos, literatura, papelaria sofisticada para caligrafia, jardins, pensadores, matemáticos, filósofos, poetas e astrofísicos?
A história que nos chega às mãos sobre a região que se estende das costas orientais do Mediterrâneo ao mar negro e aos Himalaias, nos oferece apenas a visão de culturas selvagens, lugares malditos e sombrios como Cazaquistão, Uzbequistão, Quirguistão, Turquemenistão e o Cáucaso e, ainda, o Irã, o Iraque, a Russia e a Síria. Essa região que está sempre prestes a ameaçar a ordem global não é um lugar estagnado e de pouca importância. Ao contrário, é aqui que estava e ainda está a grande encruzilhada da civilização que desde o princípio da humanidade até os dias atuais molda e influencia o mundo como um todo.
Não foi em Atenas, Esparta, Tebas, Creta ou Tróia, as famosas polis gregas, que o mundo civilizado foi molado como a visão eurocêntrica quer que seja. Metrópoles que se estabeleceram há mais de 5000 anos, como Harappa, Mohenjodaro no Vale do Indus, cidades matriarcais magníficas com comércio e vida social intensa, com sistema de esgoto sofisticado que a europa só veria séculos mais tarde, ou as magníficas Babilônia, Uruk e Acádia na Mesopotâmia famosas por sua arquitetura e jardinagem, foram seminais para a constituição de nossas civilizações. Foi aqui que grandes impérios nasceram e morreram deixando suas marcas no mundo todo.
No século 8, por exemplo, surfando na onda de riqueza e prosperidade que surgiu com o islã, cidades foram construídas para abrigar a arte, a geografia, a astronomia, a literatura. Em especial uma cidade enorme chamava a atenção. Ela foi construída nessa época, e abrigava quase 100 milhões de habitantes, pense nisso, 100 milhões, o que a tornaria a mais rica e povoada do mundo todo. Ela era conhecida por Madinat al-Salãm, ou a cidade da paz, que hoje é Bagdad!
Essa é a mesma região que abrigou o nascimento das religiões e foi palco de sua intensa mobilidade, na maioria das vezes pacífica. É aqui também onde vimos o grande movimento das famílias linguísticas surgirem ao lado da intensa migração humana. A família indo-europeia que deu origem ao espanhol, português, inglês, alemão, russo, hindi, e quase todas as outras línguas faladas na India hoje, e ainda as línguas semíticas, sinotibetanas, as turcomanas e caucasianas. O mundo pulsava a partir daqui!
Na introdução do livro, Frankopan descreve algo que teria disparado nele a vontade de rever a história da formação do mundo para muito além das fronteiras europeias e gregas. Segundo a mitologia grega, Zeus, o grande pai dos deuses, pegou duas águias e as deixou cada uma delas num extremo do mundo, e lhes ordenou que voassem ao encontro uma da outra. Uma pedra sagrada chamada de omphalo, o umbigo do mundo, seria colocada no lugar onde as águias se encontrassem, um lugar sagrado. Quando se mede o centro do mundo imaginando os vôos das águias de zeus, a depender de onde colocamos o extremo oriental e o extremo ocidental, o umbigo do mundo varia, mas ainda assim, sob vários ângulos, ele sempre se encaixa em algum lugar entre o mar negro e os himalaias – o coração do mundo!
Estudar os povos que vieram antes, ignorados pelos acadêmicos, nos dá a chance de acessar um vasto legado cultural, religioso e econômico que nos permite compreender o mundo de hoje. Esse mundo que se move aparentemente de forma alucinada para um fim. Mas, quantas vezes o mundo e as civilizações já não viveram coisas parecidas? Quantas vezes, em face do caos de valores éticos, políticos e religiosos, os clérigos não anunciaram o apocalipse e um salvador para a redenção dos fiéis? E quantas vezes o mundo seguiu sua história na espreita de novas razões para uma vida mais esperançosa? ou para mais uma ameaça que faz da religião o único caminho de salvação? E quantas vezes por ter a religião com suas promessas canônicas nos faltado, não usamos de nossa determinação para insistir em reconstruir a vida com relativo sucesso?
Esse livro é um relato desses momentos da história da civilização mundial. Um deleite!
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Foto do Quirguistão por Amir Asakeev.