Quando eu comecei a fazer aulas de desenho, logo na primeira tarefa eu pensei – isso é impossível, não é pra mim! Quando meu desenho ficou finalmente pronto, por mais principiante que fosse aos olhos de um desenhista, para mim estava incrível! Eu vi no desenho uma forma de expressar meu silêncio, algo de dentro de mim, de minhas impressões e imaginação que podia vir à tona. Desenhar é um ato de amor para o cérebro e alma. Vai revelando registros, e me lançando para fora de maneira
inusitada. As mãos dando forma a algo que vi ou senti, simplesmente com um lápis e um papel, é magia. O ato de desenhar me leva sem qualquer relutância ou dificuldades ao foco absoluto. Uma experiência que acalma e aumenta o silêncio mental, semelhante à meditação. O desenho não é apenas uma atividade artística com grande impacto sobre cérebro, mas uma forma de existir coesa e completamente naquele instante, dentro daquele agora.
Como o desenho pode te recolher em um espaço sem forma e sem tempo, inominável, e também te propelar para um espaço de predicados e formas? Essa pergunta anima rodas intermináveis de conversas sobre a neurobiologia e filosofia. A gente tem uma ideia, mas nada que aponte um caminho definitivo. Nossa ignorância sobre esse mecanismo tem origem na definição de sistema complexo, exatamente como é o sistema mente-corpo.
Um sistema só pode ser considerado, de fato, complexo quando suas partes se juntam em um coletivo e produzem propriedades emergentes que nunca, em tempo algum, podem ser atribuídas à nenhum dos elementos que compõem esse sistema.
O desenho como outras formas da arte fazem isso. Naquele instante onde corpo e mente se juntam para desenhar, usando pontos, traços, manchas sobre uma superfície qualquer, levando a pessoa a
uma condição de entrega criativa, algo ganha forma. Pode parecer aos olhos desavisados de alguém que aquilo que ganhou características é tudo que se pode obter com o ato de desenhar. Mas, não é apenas isso. O desenho que ganha forma e toma espaço é uma das propriedades manifestadas. Há muitas outras, todas elas acontecendo dentro da pessoa durante o processo de desenhar.
A literatura acadêmica tem muito a dizer sobre os efeitos do desenho no sistema corpo-mente em razão, principalmente, da sua ação direta sobre o cérebro. São vários os elementos neuroquímicos envolvidos nessa arte. Se, por um lado o desenho surge exteriorizado na superfície, por exemplo, do papel, muitas outras produções são geradas em nós e permanecem em nós.
Desenhar melhora a memória e a capacidade de dar vida e projetar algo direto da imaginação para o papel, seja usando novos conceitos ou não. Isso influência de modo positivo a cognição e a capacidade de criar. O ato de desenhar envolve não apenas olhar atentamente para algo mas, sobretudo, estar com o objeto, conversar com ele, se aproximar e se organizar em torno dele para depois encontrar soluções que dê forma àquilo que só você viu ou sentiu. Issa faz do desenho algo muito especial para o nosso amadurecimento, inclusive o emocional e o motor.
Há um profundo silêncio mental durante o ato de desenhar só vivido se você fosse uma pessoa com larga e longa experiência com a meditação. O foco aumentado no alto grau que o desenho oferece, permite uma entrada natural e simples no estado de fusão. A pessoa sai do modo default cerebral, no qual se está permanentemente pulando de assunto para assunto, com uma agitação mental enorme, para um estado no qual a gente se funde ao objeto da atenção. Isso só ocorre em razão da grande produção de endorfinas, dopamina e outros neurotransmissores e hormônios que propiciam a experiencia da completa absorção, e mais, uma absorção em vigília que é raro. Este é um estado muito cobiçado na meditação conhecido pelo nome de samadhi. Neste estado, o cérebro se recompõe e se renova, tanto na meditação quanto no desenho.
Existe ainda um outro efeito do ato de desenhar sistematicamente. No estado de atenção plena e presença completa que o desenhar propicia, facilitado pela química que permite a fusão entre quem desenha, o desenho e a imaginação, algo novo surge em nós. Uma condição de alma muito especial brota quando, no estado de entrega e fusão, somos absorvidos em tudo que há ao mesmo tempo. Eu absorto em mim e em tudo à minha volta e muito além das fronteiras conhecidas. Mais ou menos como se a pessoa tivesse sido abduzida da realidade, porque o tempo e os fenômenos param. Mas, não é isso. Não abdução mas absorção.
Um dos estados mais desejados das práticas meditativas é aquele em que o eu e as identificações que constituem a identidade social do sujeito vão cedendo para que haja um alargamento das fronteiras subjetivas, permitindo a experiência do estar absorto em tudo conhecido e desconhecido. Este estado não nos retira da realidade, mas nos faz ficar um com ela, superando as divisões e
criando uma unidade vibratória. Nesse estado meditativo somos capazes de permitir a experiência inédita com o desconhecido, aquilo que, lá no fundo, nos mete medo.
A condição de absorção não pode ser planejada. Tudo acontece sem pensar, simplesmente indo da experiência sensorial, fenomenológica, até o ponto em que tudo se integra, e o eu passa a coexistir com tudo que há, sem necessidade de dar nomes ou identificar sensações. Essa é a experiência não fenomenológica do eu. Eu sou com tudo uma unidade sem nome, sem forma, sem predicados. Um espaço vibrante e silencioso do nada.
Nas minhas duas horas de aula de desenho, talvez eu experimente isso por 45 a 50 minutos, o que é absolutamente inédito e espetacular. Eu recomendo!