A compaixão, frequentemente vista como uma virtude transformadora, é uma manifestação da alma a serviço da diminuição do sofrimento dos seres que promove empatia e solidariedade. A compaixão é considerada essencial nos campos da saúde e dos relacionamentos humanos. Ela ganhou notoriedade com o budismo e tornou-se um aspecto a ser desenvolvido por nós especialmente em momentos de crise, sofrimento, injustiças e guerras como este que vivemos. Inúmeros estudos da genética e da sociologia são unânimes em afirmar que nós humanos só fomos capazes de ir tão longe, em razão da capacidade de sermos compassivos uns com os outros. Entretanto, em sociedades neoliberais, a compaixão tem sido usada apenas como instrumento para soluções individuais, mantendo o sistema adoecedor e injusto intocado, ao invés de buscar solucionar as causas estruturais do sofrimento humano. Eu gostaria de conversar sobre a compaixão de forma ampla, reconhecendo seus limites, sobretudo quando ela se torna um produto mercantilizado através das práticas de autocuidado, e integrar suas dimensões genuínas e as implicações dela nas nossas vidas.
A compaixão é frequentemente vista como uma virtude essencial na promoção de empatia, solidariedade e apoio ao outro. No campo da saúde, por exemplo, ela pode ser um agente motivador para melhorar o cuidado ao paciente e entender o sofrimento das pessoas em um nível mais profundo. Quando praticada de forma genuína, ela pode desafiar sistemas opressivos, promover a justiça social e mobilizar ações para mitigar o sofrimento em sua origem.
No contexto espiritual, como em muitas práticas do budismo, yoga e outras tradições, a compaixão é um caminho para a autorrealização e a compreensão da interconectividade entre todas as coisas e
fenômenos. Aqui, a prática compassiva vai além de gestos superficiais e se enraíza em um entendimento profundo da natureza do sofrimento humano, o que liberta e traz paz para o ser humano.
No budismo por exemplo, a compaixão, conhecida por karuṇā, é um conceito filosófico central e profundamente ligado ao conhecimento, a sabedoria (prajñā). Ela não é apenas um sentimento de empatia ou piedade pelos outros, mas uma força ativa que motiva o indivíduo a aliviar o sofrimento de todos os seres. A compaixão, no budismo, é inseparável do entendimento da interdependência de todos os fenômenos e por isso ela é revolucionária., Ela também abre caminhos para sercraticadanão só em relação a outros seres, mas para si mesmo.
Em sociedades neoliberais e conservadoras, a compaixão é transformada em um ideal individualista, onde o ato de ser compassivo pode estar mais relacionado ao aprimoramento pessoal do que a mudanças sociais necessárias. É muito comum vermos organizações promovendo a prática da compaixão em ambientes de trabalho não para desafiar condições exploratórias, mas para aliviar tensões temporariamente, sem alterar as estruturas injustas. Assim, a compaixão se torna uma ferramenta de apaziguamento e conformismo, em vez de uma força amorosa de transformação radical.
Aqui, o foco excessivo na “compaixão individual” também pode obscurecer questões sistêmicas, como desigualdade social, racismo, sexismo e outras formas de opressão, colocando a responsabilidade do sofrimento nas mãos do indivíduo, em vez de identificar e transformar suas causas estruturais.
Infelizmente, muitos profissionais das práticas mente-corpo, como a própria Kundalini Yoga, usam acriticamente a poderosa ferramenta da compaixão, e se prestam, não intencionalmente, a perpetuar esquemas injustos e adoecedores.
Outro elemento que gostaria de ressaltar é compaixão quando excessivamente demonstrada publicamente, que pode se tornar numa moeda moral, um valor social que as pessoas ou organizações usam para aumentar seu prestígio. Em tempos de redes sociais, atos compassivos muitas vezes são exibidos como performance, assistencialismo barato que colocando o beneficiário da compaixão em uma posição de passividade e vulnerabilidade, o que desvirtua seu sentido mais profundo.
Embora a compaixão possa ser uma força poderosa, é importante reconhecer que ela tem seus limites. Em alguns casos, a compaixão pode se transformar em “cansaço da compaixão” ou “fadiga da empatia”, especialmente em contextos de trabalho intensamente emocional. O esgotamento emocional pode levar a uma incapacidade de se conectar com o outro e provocar adoecimento real na pessoa exausta.
O sofrimento (dukkha) é uma das quatro nobres verdades do budismo, e reconhecer sua existência é o primeiro passo nessa tradição. A compaixão surge do reconhecimento do sofrimento e da compreensão de que todos os seres estão sujeitos à dor, ao desejo e à impermanência. Portanto, a
compaixão no budismo é abrangente, estendendo-se a todos os seres vivos, e não apenas a seres humanos. Esse tipo de compaixão é altruísta e busca erradicar as causas do sofrimento, como o apego e a ignorância.
A compaixão no budismo Mahayana não se limita ao desejo de aliviar a dor física ou emocional, mas a intenção de eliminar o sofrimento mais profundo, relacionado à ignorância sobre a verdadeira natureza da realidade. Apenas a sabedoria permite ver a verdadeira natureza da realidade, ou seja, a vacuidade (śūnyatā), a ideia de que todas as coisas são interdependentes e desprovidas de existência inerente.
A compaixão sem a sabedoria pode levar ao apego ou ao esgotamento emocional. Por outro lado, a sabedoria sem compaixão pode se tornar fria ou desumana. O equilíbrio entre essas duas virtudes é essencial no caminho budista.
Já nas vertentes contemporâneas do budismo, como o Budismo Engajado promovido por figuras como Thich Nhat Hanh, a compaixão assume também uma dimensão de ação social. Aqui, a compaixão budista envolve um compromisso ativo em mitigar o sofrimento causado por injustiças sociais, econômicas e ambientais. A prática da compaixão vai além da meditação individual e se traduz em ações que buscam a transformação de estruturas opressivas que perpetuam o sofrimento coletivo.
No Sikh Dharma, fonte a partir da qual emerge o kundalini yoga, a compaixão (daya) é considerada uma virtude fundamental, profundamente ligada à justiça, verdade e serviço ao próximo. Ela reflete o princípio de igualdade e interconexão entre todos os seres. Para os sikhs, a compaixão é uma manifestação do amor divino e deve ser exercida de maneira prática, através do serviço ao outro e do cuidado com aqueles que, por alguma razão, não podem cuidar de si mesmos.
Como maior exemplo disso, o Golden Temple, o templo mais importante dos sikhs, oferece todos os dias do ano, ininterruptamente, refeições frescas, com produtos orgânicos e sem proteína animal para todo e qualquer ser humano de qualquer fé. São servidas cerca de 80 mil refeições por dia, e os voluntários utilizam 7.000 kg de farinha de trigo, 1.200 kg de arroz, 1.300 kg de lentilhas e 500 kg de ghee por dia!
Para os sikhs, a compaixão não é apenas um sentimento passivo, mas uma ação ativa, politico social e contínua em direção ao bem-estar de toda a humanidade. A compaixão é algo que se adquire com o conhecimento sobre as polaridades dukh (angustia) e sukh (prazer), que permeiam inexoravelmente a vida humana. Para os sikhs, o sofrimento não é visto apenas como algo negativo, mas como parte natural da vida humana, porém, quando o sofrimento se torna estrutural, ele precisa ser eliminado em sua raiz, oferecendo assim as condições mínimas estruturais para que os seres humanos possam fazer suas escolhas entre prazer e dor e lidar com elas.
Das práticas mais conhecidas ao cultivo da compaixão, tanto no budismo quanto no sikhismo, está a meditação. Através da meditação, podemos treinar a mente para desenvolver a compaixão universal, que transcende as fronteiras do eu e do outro.
Na próxima semana queria apresentar a vocês uma meditação do kundalini yoga que busca promover daya, a compaixão, em nós todos. Até lá!