Dizer que meditar é uma forma de arte seria muito arrogante e, até, intelectualmente irresponsável de minha parte. Mas, refletir sobre esse isso me anima demais, e sou tomada por um atrevimento sem medida, que me faz escrever sobre o tema. Essa reflexão é sobre o que encontrei ao esmiuçar sobre a arte e a meditação. Existe nelas um predicado que as aproximam, e justo o ponto onde elas se tocam e se espelham é o que me interessa. Em meu entendimento, o atributo que ambas compartilham é o deslocamento. No espaço entre iniciar e concluir uma obra de arte ou uma meditação, entre a formulação de uma intenção e sua realização, vive-se um processo complexo e rico que muito ensina sobre nossa fragilidade humana e nossa atração pelo desconhecido. Se o ato de criar é caótico e muitas vezes dolorido, eu me sentiria confortável em afirmar que esse ato é meditativo, porque o mesmo acontece com a meditação. Tanto na arte quanto na meditação há um processo de deslocamento que doi e dá prazer. É sobre isso que quero falar.
A pintura humana mais antiga que se tem notícia foi encontrada em uma caverna na Indonésia. Nada sabemos sobre quem a pintou, tampouco temos ideia se foi uma obra individual ou coletiva. A única coisa que conhecemos hoje é a sua idade: ela foi pintada há 51.200 anos.
Imagine isso! Este é o período de entrada no paleolítico superior, preso lá nas remotas dobras do tempo, no qual nossos antepassados são retratados como seres sem sofisticação social e artística, e incapazes de transcender sua labuta física de sobrevivência. E não é que, de repente, rompendo camadas empoeiradas de sedimentos surge desse ermo passado uma pintura, que nos olha cara a cara revelando nossa ignorância sobre esses seres humanos.
Essa obra de arte expõe nosso desconhecimento sobre como essas pessoas sentiam e pressentiam o mundo, sua relação com a vida além de uma mera rotina de sobrevivência e como elas transcendiam a realidade bruta de seus tempos para fazer arte. Nosso desconhecimento não apaga o fato de lá já estarem pessoas com força de expressão suficiente para deixar a marca de suas existências estampadas de modo indelével naquela rocha, em vermelho, um porco gigante e três pessoas ao seu redor. Lindo!
O que aquela obra quer dizer ninguém sabe. Por que razão um olhar varreu o horizonte do cotidiano, o sentiu e o transcendeu de modo a cristalizar uma intenção subjetiva naquela rocha gigante, também não se sabe. É simplesmente intrigante e maravilhoso ao mesmo tempo.
Desde os primórdios a arte se nutre, sobretudo, de símbolos e metáforas e por isso ela é considerada uma força íntima reveladora do eu, tornando possível ao artista se estender ao outro e se revelar ao mesmo tempo. O artista frequentemente canaliza suas emoções e experiências profundas em sua obra, que reflete os complexos labirintos de sua psique, e as vários sedimentos de sua relação com o mundo e consigo mesmo. O artista é transpassado por sentimentos, ideias, desejos, satisfação, frustração, arrebatamentos e dilacerações que se estampam em sua obra.
Também é verdade que, quem contempla a arte não está protegido de confrontamentos, já que no instante fugaz em que se olha a obra, ela já estabeleceu uma relação de intimidade com quem a observa. Essa relação não é necessariamente calma e acomodadora. A arte provoca, toca, disputa opiniões, acalma, agita, extrai de nós assombros, rejeições, e também suspiros, conforto e reconhecimento. É a arte que revela e, talvez, transforme sentimentos de angústia, desejo, medo e esperança em formas visíveis e tangíveis, tanto para o artista quanto para o observador.
Está na âmago da arte o poder de deslocar, o que abre espaços para novos ângulos através dos quais a obra de arte permite ao artista e ao observador serem tocados de modo a revelarem muito de si. O território da arte não se limita apenas às fronteiras da estética. Muito deste território está fundado no solo psíquico e na alma humana, que formam o palco dos desejos, sonhos, traumas e conflitos.
É neste sentido que a arte pode ser vista como a arena privilegiada para a construção, manifestação e transformação mais profunda de nossas subjetividades, tal como meditação o é. Uma diferença importante entre ambas é que, na meditação este processo não ganha exteriorização, permanecendo interno e independe do outro. Vamos ver um pouco sobre a força de deslocamento da meditação.
A meditação é parte integral da cultura humana, entretanto ela se difere em forma, função e significado, tanto ontológico quanto espiritual, segundo o peso de certas influências culturais.
O ato de meditar como forma de se alcançar paz interior é uma criação moderna, reducionista, nascida no solo norte-americano no início do século 20 sob a influência do yoga postural e da religião cristã, ambos envoltos na cultura do corpo forte e mente forte e devota, o que resultou numa drástica anemia da essência da meditação, o que levou a uma enorme atrofia de seus objetivos.
A suposta paz que se almeja alcançar na meditação só pode ser considerada real quando permitimos o derradeiro deslocamento, em outras palavras, quando atravessamos a grande tormenta
existencial interna e suas narrativas e identificações para chegar, finalmente, na terra do nada. Este espaço vazio surge em razão da ausência de anseios, sentido como silêncio e entrega ao eterno agora. Em razão de não encontrarmos em nosso repertório linguístico uma palavra própria para expressar a experiência deste vazio, deste nada, atribuímos a essa sensação o nome de paz.
O grau de deslocamento na meditação varia em intensidade e objetivos. Em pinceladas largas eu diria que a meditação varia segundo dois grandes eixos culturais. O primeiro pertence a teologia, que vou denominar tradição ocidental, mesmo sabendo das limitações desta generalização, e o outro ao dharma, conhecido como tradição oriental.
A teologia é o estudo da natureza de Deus com ênfase na interpretação da doutrina da fé e das revelações que devem guiar e dar sentido a existência humana. A teologia está na gênese das tradições religiosas abraâmicas como o cristianismo, judaísmo e o islamismo. O dharma, originário das tradições espirituais indianas como o budismo, hinduísmo, sikhismo e o jainismo, é o estudo dos princípios essenciais que regem a ordem cósmica, e das leis da moral e da ética que guiam a conduta humana. Enquanto a teologia é pautada pelo dogma, cuja lei tem força para enquadrar a realidade em seus ditames, o dharma é regido pela realidade em si, que é, ao mesmo tempo, a lei.
A prática da meditação tem sido parte da tradição cristã desde os primeiros séculos do cristianismo. O desenvolvimento da meditação como uma prática formalizada e distinta pode ser atribuído principalmente aos Padres do Deserto, também conhecidos como Padres do Oriente, que viveram nos primeiros séculos da era cristã. Um dos primeiros e mais influentes textos sobre a oração contemplativa e a meditação na tradição cristã é “A Escada da Ascensão Divina”, escrito pelo monge João Clímaco no século VI do mosteiro no Monte Sinai.
Para a tradição cristã, a natureza do conhecimento se estabelece na relação do indivíduo com a sua fé e com a revelação divina. Uma vez que o conhecimento divino só pode ser revelado por Deus, a escritura sagrada (bíblia) torna-se a fonte mais importante desta revelação. A epistemologia cristã tem na fé em Deus o elemento imprescindível na busca da verdade, sendo que a revelação divina é considerada fonte obrigatória deste conhecimento.
Neste contexto, a meditação praticada pelas crenças ocidentais cristãs adquire duas formas conhecidas e bem distintas entre si. Uma é a meditação apofática, derivada da palavra grega apóphasis, que significa “negação”, que se fundamenta na ideia de que Deus transcende todos os símbolos terrenos e a própria compreensão humana, e por isso a meditação envolve transcender e purificar todos os conceitos que o individuo possa ter sobre Deus. Qualquer imagem mental que surja deve ser gentilmente descartada com o objetivo de experimentar um senso de Deus como totalidade, semelhante ao conceito de Nirvana no Budismo, porém com uma grande distância do zen budismo que, na busca de dissolução de qualquer imagem mental faz o seguinte alerta ao praticante: “se na meditação encontrares Deus, mate-o”.
A segunda é a meditação catafática, originária do grego “katafatikós”, que significa “positivar”. O objetivo desta corrente é reafirmar o conhecimento de Deus por meio de descrições maravilhadas e magníficas sobre Ele, levando o indivíduo ao êxtase na medida em que o próprio declara em alta voz a grandeza de Deus.
Enquanto a meditação apofática aborda Deus através daquilo que Deus não é. A abordagem catafática, ou teologia positiva, enfatiza a capacidade humana de compreender e falar sobre Deus usando descrições de seus atributos, tais como o amor, a bondade, a onipotência, entre outros.
Nas tradições dhármicas, o recurso da meditação tem objetivos bem diferentes já que a natureza do conhecimento e a razão de buscá-lo são bem distintas daquelas ocidentais. Nessa tradição vemos se repetir, em suas várias correntes, a ideia de meditação como meio de levar o individuo para dentro de si, caminho esse que passa por deslocamentos contínuos e progressivos que vão abrindo brechas para a compreensão sobre a origem dos fenômenos e formas, podendo culminar na fusão do eu com tudo.
No budismo, a mente é considerada central no processo do conhecimento, cujo objetivo é descobrir e anular as raízes do sofrimento humano. Isto é alcançado tanto pela destilação racional quanto por uma conduta ética, ambas reconhecendo que todas as coisas surgem e se dissipam em interdependência dinâmica. Ou seja, tanto eu quanto o outro estamos envolvidos no processo de construção do conhecimento. Para os budistas, o conflito e o sofrimento são distorções também relacionais, fruto da ignorância, hábitos e percepções cognitivas e emocionais que alimentam o desejo de anseio.
Nesta tradição, a meditação serve para investigar de forma direta, e com recusa de dogmas e autoridades, a realidade e a si mesmo com vistas a purificar a mente e transcender a dualidade sujeito-objeto, maneira pela qual se alcança o entendimento profundo da existência. Não há uma crença em um deus criador, monoteísta e por isso o budismo tem sido frequentemente descrito como uma tradição ateísta ou não-teísta.
Para o hinduísmo, e todas as suas diversas escolas, é possível identificar uma característica basilar em relação à busca do conhecimento que as permeia, que é a valorização da experiência direta e da intuição como meios válidos de conhecimento. O conhecimento resulta da percepção sensorial, do raciocínio lógico, da inferência e da autoridade de textos filosóficos clássicos que, na meditação, se juntam para propiciar a experiência da realidade última, denominada brahman, ou o absoluto metafísico eterno e sem forma, a partir do qual tudo emana, inclusive as divindades hindus.
Portanto, no hinduísmo, a meditação desempenha um papel crucial como um meio de alcançar conhecimento direto e transcendental deste absoluto metafísico. Ela é o veículo indeclinável para a introspecção, autoconhecimento e a união com a consciência cósmica (Brahman). A ideia de Deus no hinduísmo é complexa com versões que vão do henoteísmo, politeísmo, panteísmo, monismo, agnosticismo, ateísmo ao não teísmo.
No Sikhismo, se considera que tudo no universo se originou de uma vibração primordial (naad) que deste então reverbera eternamente. A vibração original surge a partir de um estado absoluto, sem atributos como tempo e espaço ou materialidade, um nada, que eles denominam “consciência não manifesta”. A expansão dessa vibração gera tempo e espaço e atributos materiais que dão origem a todas as formas existentes. O símbolo desse som primal é ੴ , que a Anita tem tatuado em seu tornozelo, representando essa singularidade, a fonte vibracional criativa, que embora indescritível, pode ser sentida e compreendida aos que renunciam ao egoísmo e meditam no som primal.
Seria lógico supor que o som tenha um papel seminal na tradição sikh, e isso se confirma. A prática central de meditação no sikhismo é conhecida como Naam Simran, literalmente meditação (simran) no som primal (naam). Ela envolve a repetição e a contemplação dos sons primordiais. O objetivo da meditação aqui é ajudar o praticante a transcender seu eu mundano e a alcançar uma unidade com as frequências mais puras do universo, e com isso reconhecer e expandir a consciência dessa unicidade universal subjacente a toda a criação.
Alguns estudiosos têm definido a conceitualização sobre Deus no Sikhismo como uma forma de panenteísmo. O panenteísmo postula que o divino intersecta cada parte do universo e se estende além do espaço e do tempo, mantendo uma distinção ontológica entre o divino e o não divino e a importância de ambos. O termo foi cunhado pelo filósofo alemão Karl Krause em 1828, após revisar as escrituras hindus, para distinguir as ideias de Hegel e Schelling sobre a relação entre Deus e o universo do suposto panteísmo de Spinoza.
Enquanto a meditação na tradição ocidental, pouco ou nenhuma importância dá ao sujeito e seus dramas na busca do conhecimento, na tradição oriental, ao contrário, o caminho do conhecimento começa e termina no sujeito.
Para concluir, eu diria que a pessoa que se entrega à prática da meditação para além da busca da pílula mágica contra seu desassossego, pode ser levada a percorrer caminhos internos muito inóspitos, contraditórios e muitas vezes decepcionantes. Este é o nosso território existencial, e na sua travessia nos deparamos com os deslocamentos que podem, eventualmente, desvelar caminhos antes não percebidos, novas possibilidades, e com o tempo, nos presenteia com uma profunda ausência de demandas e anseios. Aqui chegamos na terra do nada, daquele silêncio que ensina e abençoa.
Imagem: Narciso, Caravaggio (1594-96). Fonte: Wikipédia