O trabalho e o mero viver estão tão bem amarrados em nossa cabeça que se tornaram, praticamente, inquestionáveis. Eles servem de ossatura que sustenta o corpo de uma sociedade de consumo e de auto-superação, enaltecida pela promessa de ascensão e a ideia de ser espiritualmente nobre abdicar da vida em nome do sucesso. Assim, a valorização do trabalho a despeito da vida parece parte essencial de todo ser humano bom e do bem. Passar por cima das dores do corpo e da alma, não lhes dar ouvidos, medicalizar-se para seguir adiante sempre mirando no sucesso e no reconhecimento, faz com que se cultive o esgotamento como merecida premiação de superação. Mostrar as feridas de guerra com orgulho pode restaurar o brilho perdido de um corpo e alma que meramente vivem. O que o medo da morte tem a ver com isso tudo?
O empreendedor de si mesmo não precisa fazer algo para obter sucesso, ele pode fazer algo se quiser, pois ele é livre! Para isso ele precisa de três coisas: motivação, empenho e imunidade às angustias existenciais.
Para alcançar essa tríade, a pessoa precisa apagar continuamente qualquer vestígio da negatividade existencial, de modo a ficar permanentemente pronta e convencida da relevância do trabalho sobre a vida, e não, lamentavelmente, o contrário. Esse flagelo humano só pode ser funcional à base de remédios e procedimentos.
Essa pessoa precisa se convencer recorrentemente de que a vida é uma mera oportunidade para a auto-superação e para o enriquecimento, e essa visão de mundo fomenta a necessária motivação e, a medicação cuida do resto, ou seja, de mantê-la empenhada na ação. Mas, não é só isso. Como
garantir a imunidade contra as angustias existências, para as quais não há remédio infalível? Essa pessoa precisa a todo custo transpor ainda aquela última barreira que ameaça sua trajetória de sucesso. Eu estou falando daquele insólito e angustiante imponderável, indissociável da vida em si que é o amor, simples e verdadeiro, o eros transgressor que se recusa a um mero viver.
Assim, esse flagelo humano sustentado à base de remédios e insensível ao amor, dá volume e expansão à ideia original que o motiva: através do esforço pessoal, da motivação e da autosuperação, cada vez mais ele galga um aclive do sucesso mantendo a engrenagem funcionando e se tornando cada vez mais petrificado para as emoções naturais da vida e do amor.
No livro do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han denominado a Sociedade do Cansaço, aliás uma obra magnífica para entender o ser humano de hoje, o autor explora como a sociedade contemporânea transforma indivíduos em agentes de autoexploração, resultando em uma epidemia de exaustão e burnout. Nessa sociedade, a vida em si é o que menos importa.
Como fomos capazes de abrir mão daquilo mais precioso em nós, nosso corpo e alma como territórios de vida plena e boa, com tudo de bom e ruim que ela entrega? Quais as consequências disso para nossa vida real, corpo e mente? Isso me coloca no campo científico do meu mestrado e doutorado, cujas investigações se dedicavam a entender como a economia e organização social interferem e afetam de modo indiscutível a saúde das pessoas.
Vamos rever um pouco da nossa história durante os séculos XVII e XVIII, quando fizemos a transição de uma economia feudal para aquela baseada na produção industrial e no mercado livre, na qual a propriedade privada, a acumulação de capital, e a busca pelo lucro são os principais motores. Assim nascia o capitalismo e com ele a necessidade de se ter uma força de trabalho eficiente e disciplinada com técnicas e instituições que regulassem a vida dos indivíduos de maneira sutil e contínua. A regulação da vida humana imposta pela mão brutal do soberano e suas punições humilhantes desaparecem, e em seu lugar surge a sociedade disciplinar, com o poder descentralizado e instituições como escolas, prisões e fábricas que educam e corrigem moldando comportamentos, como nos diz Han.
Suas teses têm peso. Han argumenta que passamos de uma de uma sociedade disciplinar (termo cunhado por outro filósofo, Michel Foucault) para uma sociedade de desempenho, cuja estrutura fez com que a coerção externa fosse substituída pela auto-imposição de metas e tarefas. Sem dúvida, um novo referencial no qual os indivíduos são vistos como empresários de si mesmos, constantemente buscando melhorar e maximizar sua eficiência e produtividade, sendo disciplinados para se comportarem de maneira previsível e desejável. As técnicas de disciplina hoje disponíveis são aplicadas para criar corpos dóceis e úteis, adoecidos e malogrados.
Um estado contínuo de exaustão no qual a pessoa precisa se manter apta e ativa é a marca da sociedade do desempenho. Mas, isso tem consequências trágicas. Cada vez mais as estatísticas se atualizam no topo, com burnout, ansiedade e depressão e a falência completa do coração e cérebro.
Você deve estar se perguntando como um ser humano assim, carregando tamanho torpor, peso e dor, poderia ser ainda funcional e manter a engrenagem neoliberal girando. Existe apenas uma única maneira disso acontecer. Se não houvesse uma indústria farmacêutica sofisticada, não haveria saída para esse sujeito do desempenho, pois o que ele não pode prescindir é do uso abusivo da
medicalização. Remédio para dormir, remédio para acordar, remédio para digerir alimento, remédio para funcionar os intestinos, remédio para o coração, remédio para o colesterol, remédio para a pressão, remédio para a memória e por aí vai. A lista é infindável.
Eu não me surpreendo, apenas me entristeço, quando olho o quadro de mortes no mundo. Mais de 74% das mortes acontecem por doenças não-comunicáveis, aquelas doenças degenerativas e crônicas. A causa dessas doenças está, comprovadamente, associada ao estilo de vida, e, portanto, poderiam ser evitadas. Isso é lamentável.
No Brasil, os números são ainda maiores, as mortes por doenças não-comunicáveis atingem quase 83% dos casos totais dos óbito. Estamos morrendo de doenças degenerativas cerebrais como Alzheimer, Parkinson, doença cardíaca isquêmica (AVC), doença pulmonar obstrutiva crônica, infecções do trato respiratório inferior, câncer de traqueia, brônquios e pulmão, diabetes e somos atingidos impiedosamente pela ansiedade e depressão. O cenário é ruim.
Precisamos nos empenhar em refletir e buscar mudanças desse quadro. Um caminho seria de nos esforçarmos a uma crítica à cultura do positivismo excessivo, tão útil à sociedade de desempenho. Na ideologia do desempenho, a angustia e a tristeza, que acontecem quase que naturalmente para
quem vive a vida de modo profundo e não apenas meramente, precisam ser aplainadas. Elas são vistas como fraqueza de caráter e adoecimento do espírito. Contra esse mal, além da medicação, é necessário reforçar o treinamento que super valoriza a felicidade e o sucesso, comportamento esse que pode esconder a realidade da fadiga e do esgotamento.
A consequência trágica desse modo de vida, além de adoecer e matar, é o extermínio da capacidade de contemplação e reflexão, fundamentais para a saúde mental e para uma vida equilibrada, como alerta Han.
A vida plena ser faz com base no trabalho, mas o trabalho servindo à vida e não o contrário. As pessoas nesse planeta não precisam se enriquecer infinitamente. Não é possível que o corpo do planeta terra abrigue tamanha insensatez e ganância. A vida plena é cheia de altos e baixos, de fracassos e sucessos, de alegrias e dores. A vida plena não é necessariamente feliz ou triste. Ela apenas é assombrosamente simples e oscila como tudo na natureza.
A arrogância de querer apagar o fluxo e as oscilações naturais da vida revela, lá no fundo, um medo tremendo da morte. A morte aqui no sentido simbólico, da perda, do apagamento do sonho, como nos ensina Hegel em sua obra fenomenologia do espírito quando fala do Senhor-Escravo.
Hegel mostra que a verdadeira liberdade e reconhecimento não podem ser alcançados através da dominação, mas sim através de uma relação recíproca onde ambas as partes se reconhecem como autônomas e iguais.
Para explicar o quanto estamos longe dessa reciprocidade e reconhecimento, ele usa a metáfora do Senhor-Escravo. Nela, Hegel descreve duas consciências que se encontram e desejam ser
reconhecidas como autônomas e independentes. Esse encontro leva a uma luta na qual ambas arriscam suas vidas para provar sua independência e superioridade. O resultado da luta é que uma consciência se torna o senhor e a outra se torna o escravo.
O escravo, através do trabalho e da mediação com a realidade, começa a desenvolver uma nova forma de autoconsciência. Ele percebe que o trabalho transforma a natureza e, ao fazê-lo, o escravo transforma a si mesmo e começa a perceber sua própria capacidade de moldar o mundo. O senhor, que depende do trabalho do escravo para manter seu status, se torna dependente. Por outro lado, o escravo, ao desenvolver habilidades e uma nova compreensão de si mesmo através do trabalho, começa a alcançar uma forma de autonomia.
Entretanto, o medo da morte leva o escravo a se submeter ao senhor. Ele prefere à escravidão à ameaça da morte. Por isso ele se apega ao mero viver e se dedica, porque ali existe a promessa dele se tornar, um dia, o senhor. A capacidade de morte é decisiva nessa história. Como diz Hegel, quem não tem a liberdade frente à morte não ousa viver. “Em vez de caminhar consigo até a morte, ele permanece parado em si mesmo, dentro da morte.”
Você já refletiu para si quando o “medo da morte” te faz submeter ao poder do outro? O que você ganharia perdendo o medo de perder algo? Como você poderia restaurar sua saúde e vida com uma dose, ainda que pequena, de prazer?