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Com a palavra a ciência

A verdade é uma terra sem caminhos

Em seu paradigmático discurso “A Verdade é uma Terra Sem Caminhos”, proferido em 1929, Krishnamurti desafia todas as convenções e expectativas ao dissolver a Ordem da Estrela, da qual seria a figura central, e mais esperada. Seu pronunciamento permanece mais atual do que nunca, e me marca e emociona cada vez que o leio. A coragem e lucidez de um homem de 34 anos que, na cerimônia em que seria declarado “o instrutor do mundo”, toma a palavra e proclama a dissolução da ordem afirmando que a verdade não pode ser organizada, ela é incondicional e inacessível por qualquer caminho religioso ou seitas. Ele critica ainda a dependência humana em organizações e intermediários religiosos como meio de obter segurança espiritual, sob pena de sufocar a liberdade e a autêntica busca pessoal. Ao rejeitar a autoridade outorgada a ele, Krishnamurti também dá um exemplo de independência de pensamento, coragem e fibra intelectual. Seu discurso permanece um poderoso alerta às armadilhas espirituais e religiosas e, por esta razão, eu dedico esse espaço a ele.

O MOMENTO HISTÓRICO

Era uma tarde de verão na Holanda, e o palco estava montado para uma plateia de três mil pessoas. Dentre eles, a elite econômica europeia e americana, e muitos artistas e intelectuais como Kandinsky e Mondrian, Aldous Huxley e Bertrand Russell, para citar alguns. O mundo saía da trágica 1a Guerra Mundial, que devastou material e espiritualmente a humanidade, e procurava ansiosamente por explicações da tragédia que abatera sobre a humanidade.

Onde há desespero há sempre espaço para esperança, espaço por algo que possa oferecer entendimento e mostrar caminhos seguros dali pra frente. Neste contexto, Krishnamurti foi preparado para oferecer o que as pessoas buscavam. Ele havia frequentado as melhoras escolas e faculdades europeias e a Sociedade Teosófica, então sob a condução da educadora e ativista Ane Besant, para assumir-se como o “instrutor do mundo”.

Foram dezoito anos de intensos estudos e apresentações em todas as grandes metrópoles e em todos os continentes, dando ao mundo a chance de conhecê-lo e construir a confiança necessária para a tarefa à sua frente. Na realidade, um bem estruturado projeto de comunicação colocado em marcha e que surtiu o efeito esperado. O mundo estava mais do que pronto para conhecer aquele hindu jovem, inteligente, profundo e solene, belo em suas elegantes roupas eduardianas, e com as respostas e ensinamentos que todos buscavam.

Finalmente chegara o dia de proclamar que o professor do mundo estava pronto para assumir suas funções dentro da Ordem da Estrela, uma organização espiritualista criada para ampará-lo em sua missão. Assim, naquele 3 de agosto de 1929, ele subiria ao palco e daria início ao seu ministério. O momento era solene e mágico ao mesmo tempo. Os grandes jornais e as rádios estavam atentos para a cobertura importante que anunciaria Jiddu Krishnamurti como o instrutor do mundo.

A psicanalista Hedda Bolgar, então membro da ordem e testemunha ocular daquele dia, faz uma reflexão importante ao ser perguntada, décadas depois, sobre o porque das pessoas buscarem um salvador, um messias. Em seu entendimento, o cenário mundial do pós-guerra seria o fator desencadeador para que as pessoas vissem em Krishnamurti um redentor. Havia angustia, incertezas, lutas que geravam mais dúvidas do que respostas. Todos, e em todos os lugares do mundo, estavam na busca de compreender aquele momento. Havia sobretudo, em meio a este caos e dor, o desejo de acreditar que haveria alguém melhor, mais sábio, com mais conhecimento para entregar as respostas que todos buscavam. Especialmente, segundo ela, alguém que pudesse ensinar o caminho para fora daquela dor existencial que pertencia àqueles tempos difíceis. Ela comenta ainda que havia grande desejo nas pessoas mundo afora, de serem guiadas e ensinadas sobre como serem salvas diante de tudo que se passara. Neste cenário, Krishnamurti surgia como esse monumental professor, com não menos monumental tarefa.

A DISSOLUÇÃO

Depois de encerrados os ritos da cerimonia, após as falas solenes das autoridades presentes, Krishnamurti se levanta e caminha em direção ao microfone. Seria o discurso de aceitação de sua liderança mundial, pois ele já tinha sido oficializado internamente. Havia tensão e expectativas, todos estavam emocionados e o momento era histórico e de peso. Em sua elegância e simplicidade habituais, suas primeiras palavras reverberaram deixando muitos sem entender bem o que ele estava a dizer:

Vocês devem se lembrar da estória de como o diabo e seu amigo andavam por uma rua quando avistam, logo à sua frente, um homem que se abaixa e pega algo do chão. Ele olha atentamente para aquilo e coloca em seu bolso. O amigo olha para o diabo e diz: “o que aquele homem acabou de pegar do chão? Você viu?” “Ele pegou um pedaço de verdade”, responde o diabo calmamente. “Nossa, isso é péssimo para o seu negócio”, disse o amigo. “Ó, de jeito algum”, respondeu o diabo. “Eu vou permitir que ele a organize”.

E ele continua a proferir o que viria a ser o mais monumental testemunho sobre a vida e o direito de viver de forma plena e livre.

Eu mantenho que a verdade é uma terra sem caminhos, e que ninguém pode abordá-la através de nenhuma religião ou seita. A verdade não pode ser organizada, e nem tão pouco pode uma organização ser formada para liderar ou coagir pessoas para um caminho em particular.

Se vocês entendem isso, então verão o quão impossível seria organizar uma crença. Uma crença é uma questão puramente individual, que não pode e não deve ser organizada. Se alguém o fizer, a crença se torna um credo, uma seita a ser imposta a outros. Interesse por algo que não nasça do amor pela verdade, mas surja através de organizações com seus interesses externos, não tem valor algum.

Eu gostaria de sublinhar sua visão sobre o papel das organizações, sejam elas religiosas ou espirituais, que revela uma contundente prova de sua aversão aos monopólios da verdade e das suas consequentes manipulações.

As organizações tornam-se uma estrutura para as quais seus membros podem convenientemente se adequarem. Eles não mais se esforçam em busca da verdade, mas sim esculpem para si um nicho conveniente no qual eles se colocam a salvo, ou deixam que a organização os coloque ali, e consideram que a organização os conduzirá de forma segura à verdade. Eu sustento que nenhuma organização pode guiar a pessoa para a espiritualidade.

Se uma organização for criada com esse propósito, ela se torna uma muleta, uma fraqueza que escravizará e mutilará o indivíduo, impedindo que a pessoa cresça e estabeleça sua singularidade, que reside na descoberta feita por si mesmo daquele absoluto, daquela verdade incondicional.

Por isso eu decidi, como líder dessa ordem, por dissolvê-la. Eu não quero seguidores, porque quando se segue alguém, sua busca pela verdade cessa. Para aqueles que realmente desejam entender, que buscam algo que seja eterno, sem começo ou fim, poderemos caminhar juntos. Seremos um perigo para tudo que seja não essencial, irrealidade e manipulações. Haverá amizade e cooperação verdadeiras entre nós. Não por causa de uma autoridade, ou salvação, ou imolação, mas por puro entendimento e capacidade de vivermos no eterno.

Esse momento revela a enorme lucidez e bravura desse jovem indiano. Mas, mais do que isso, revela que, ao final das contas, ele realmente deu alma e corpo ao ideal filosófico do verdadeiro professor. Krishnamurti morreu aos 90 anos, e se notabilizou como filósofo, escritor, orador e educador.

Eu estava em Londres quando a BBC apresentou sua última aparição em público, em 1986 em Chenai. Suas palavras eloquentes, belas e solenes em sua língua natal dravídica, o telugu, ecoam ainda naquela sua despedida do mundo:

Estou apenas a ser como um espelho da vossa vida, no qual podeis ver-vos como sois. Depois, podeis deitar fora o espelho; o espelho não é importante.

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