Blog/Podcast

Com a palavra a ciência

O cuidado

O cuidado – Festival Verbo Gentileza | 2023 

Imagine que você é a única pessoa viva no seu entorno, depois de uma grande catástrofe. Você  se encontra isolada e perdida, numa região que se tornou inóspita, sendo você a única pessoa  que, de fato, pode contar. Depois do choque, você se coloca a pensar sobre a situação e a  cogitar formas de lidar com ela. 

Cogitar, pensar é exatamente a origem da palavra cuidado. Sim, vem do latim, e quer dizer refletir  sobre uma determinada situação. Na situação imaginada, você daria início ao ato de se cuidar  simplesmente porque não quer morrer. Você elabora, do nada, um plano de sobrevivência. A  força do cuidado faz parte das entranhas humanas, ela se manifesta com toda fúria para  preservar a vida.  

Por que buscar uma forma de sobreviver quando tudo indica que as chances de viver são  poucas? Por que não simplesmente morrer? Porque acreditamos, para além da razão, no ganho  que teremos no minuto seguinte, no que ainda temos a viver e experimentar num futuro imediato.  O desejo alimenta o ímpeto do cuidado porque há uma pulsão de vida em nós.  

Se a gente olhar para a organização social humana há 800.000 anos, fica óbvio que, mesmo para  aquela forma social rudimentar, sem trocas de cuidados não teríamos sobrevivido. Os primeiros  humanos se reuniam em torno de fogueiras para socializar, encontrar conforto e calor,  compartilhar alimentos e informações, cuidar dos velhos e crianças, e se proteger de predadores.  Nós precisamos um dos outros, essencialmente, porque não queremos morrer precocemente. 

Mas, o que é o cuidado? Eu gosto de como Tronto e Fisher o definem: uma atividade da espécie  que inclui tudo o que fazemos para manter, conter e reparar nosso mundo, nossos corpos e  ambiente, para que possamos viver nele da melhor forma possível em uma complexa rede de  sustentação da vida. Nas nossas sociedades industrializadas e altamente tecnológicas, por  razões convergentes entre os campos da religião, economia e política, o cuidado se deslocou do  coletivo para o estritamente individual, fazendo do autocuidado a ordem obsessiva mais  fundamental, que acaba por destruir a própria rede de nossa sustentação. 

Vejam vocês, numa busca rápida no instagram, eu encontrei para #selfcare 76,5 milhões de  visualizações. Quem não quer se sentir melhor, corpo-mente e alma? Só que a prática desse  autocuidado não é para que você em sua rede se cure, relaxe, desintoxique. Não. Ela é vendida  como o único recurso de normalizar alguns ideais de felicidade, como a de beleza, de corpo, de  desempenho, de riqueza. O pensamento individualista e meritocrático do neoliberalismo e das  igrejas da prosperidade, fortemente disseminado na estrutura de nossas sociedades, higieniza a  prática do cuidado que era antes social, coletivo, integrado à vida, à natureza, para transformá-la  em um produto de uso pessoal para o sucesso estritamente pessoal. 

Por que será que chegamos a esse ponto? a teórica cultural Lauren Berlant nos conta a triste  história da normatividade atual: um conjunto de promessas, fantasias e expectativas dominantes  da boa vida, as quais nos ligamos com extremo otimismo. Isso nos fez apegar a modelos  convencionais estressantes de vida que nunca nos dão “dinheiro suficiente, nunca amor  suficiente e quase nenhum descanso”. 

Para realizar esse destino imaginário, fantástico, utilizamos práticas invasivas e generalizadas de  auto-branding que causam cada vez mais alienação, individualismo, narcisismo, vício no  trabalho, fadiga digital e escassez emocional. Quando você se torna excessivamente  autorreferencial e exageradamente o seu auto-empresário, você caminha para uma auto-

agressão sistêmica que te afasta da rede de cuidado e sustentação. Quando você permite que  sua consciência se torne o objeto de uma exploração comercial sistemática, o amor-próprio é  destruído. Sem o amor por si nada mais existe ou faz sentido. 

O adoecimento coletivo, a insanidade, a degradação do meio ambiente, a pobreza, a fome, a dor  e a morte orquestrada do outro não protegem ninguém, nem mesmo os que vivem numa  condição peculiar e anti-humana, na qual a consciência de mundo se resume a uma bolha  fantasiosa de felicidade.  

Será que a felicidade sozinha é capaz de nos proteger? Audre Lorde nos alerta que não. “olhar  para o lado positivo das coisas é um eufemismo usado para obscurecer certas realidades da  vida, cuja consideração aberta pode ser ameaçadora para o status quo. (…) Busquemos ‘alegria’  em vez de comida, ar puro de verdade e um futuro mais saudável em uma terra habitável! A ideia  da felicidade sozinha sendo capaz de nos proteger, é o resultado da loucura do lucro”. 

Há saídas? Claro, há sim. Muitos estudiosos desse problema acreditam que implementar práticas  de conscientização que vão produzir uma nova compaixão e novas formas de cuidado, para os  outros e para nós mesmos.  

Nós, indivíduos performativos neoliberais, precisamos nos aproximar de nós mesmos e dos  outros. Precisamos politizar a pobreza do tempo, a precariedade do trabalho e a autopromoção  compulsiva que, no fim das contas, nos destroem. Precisamos recriar uma temporalidade que  permite respirar e trocar, que é conectiva e coletiva, capaz de restaurar o estar para outro e o  autocuidado, e de interromper essa corrida histérica de realização, porque nela corremos contra  nós mesmos. 

Precisamos cogitar novas estratégias contra a crença dominante de que não há alternativa  econômica ao neoliberalismo, esse que faz um ataque sistemático e contínuo à vida dos  trabalhadores e, junto ao ciberespaço, só intensificou a cultura de dessocialização, solidão e  alienação. Coisas simples podem ser feitas que terão efeito sistêmico como, por exemplo,  conversar com os colegas de trabalho e amigos sobre como nos sentimos, porque isso  reintroduzirá o cuidado e o afeto em espaços onde deveríamos ser competitivos, isolados ou  perfeitos. Usar as mídias sociais de modo pro-ativo e não reativo, traduzido na qualidade de  conteúdos que compartilhamos para recriar uma rede de apoio emocional em tempos difíceis. 

Parece simples demais, e é. Precisamos começar do simples, ganhar confiança e crescer  organicamente. É isso, precisamos retomar aquele olhar do cuidado como rede, sustentação,  esperança, gentileza, vida coletiva! Já passamos tempo suficiente neste últimos 60 anos para  termos a certeza de que o autocuidado como praticado é uma técnica de autodestruição.

Veja também nosso podcast:

Acesse o nosso Spotify
contato
Para saber mais: WhatsApp, Instagram, YouTube, Facebook.
Whatsappp