O tema é urgente, está na pauta de muitos centros de pesquisa no Brasil e no mundo, e este artigo foi escrito como base para uma palestra que eu ofereci, que tinha por objetivo fornecer uma visão geral do estado atual da pesquisa e das aplicações das drogas psicodélicas para a saúde mental. Considero importante ampliar a compreensão da história das substâncias psicodélicas, seus benefícios terapêuticos, os ensaios clínicos em andamento com rigor científico, uso responsável e os laboratórios envolvidos em sua produção. A ciência psicodélica foi muito pesquisada em meados do século 20 e foi quase extinta entre as décadas de 1970 e 80. Ela ressurgiu com força no final do século passado e a escalada dos estudos no início dos anos 90 superou a marca de 700 publicações em 2019. Vamos então avançar nesse importante tema.
O próprio IPE.A, em publicação de 2021 afirma que a eficácia de terapias com psicodélicos para distúrbios psiquiátricos, como depressão e trauma severos, tem se mostrado, de modo geral, superior à dos métodos e drogas atualmente adotados. Existem ainda vantagens adicionais para os psicodélicos mencionadas no artigo do IEPA: maior rapidez no alívio dos sintomas e tratamento químico limitado a poucas doses administradas através de protocolos de tratamento, semanas ou poucos meses.
O prestígio dos psicodélicos, como pode ser observado na figura abaixo, se dá em razão da legitimação científica, como publicada pela reportagem de 2021 da revista Nature intitulada “Como o ecstasy e a psilocibina estão chacoalhando a psiquiatria”.
A partir do lançamento da fluoxetina sob o nome comercial Prozac nos anos 80, criou-se uma expectativa de cura química do sofrimento psíquico e da inadaptação social, impulsionada pela chegada ao mercado de novas gerações de antidepressivos e outros moduladores do humor. Apesar de muitos pacientes se beneficiarem efetivamente do uso dessas drogas, já neste século, a percepção de existência de “uma crise da psiquiatria” foi se revelando. Evidências das limitações, custos e riscos de um modelo excessivamente centrado em “diagnósticos de manual”, que nada mais é que, identificar e classificar transtornos mentais com base nos critérios estabelecidos pelos manuais de diagnóstico, como o DSM – Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais ou a CID, e prescrição de fármacos de uso contínuo vêm se acumulando e isso, além de ineficaz para parte considerável dos pacientes, é dispendioso e foi se mostrando menos seguro do que inicialmente se anunciava. Estava em curso então a pesquisa com psicodélicos por serem mais simples efetivo e muito mais rápidos no tratamento. Mas, a pergunta permanecia, é seguro?
Com auxílio de tecnologias como a ressonância magnética, a ciência vem identificando os principais efeitos dos psicodélicos na atividade cerebral. Eu citaria dois: o aumento da quantidade de alguns neurotransmissores e a redução da atividade em certas áreas e aumento em outras.
Moléculas parecidas com a serotonina, os psicodélicos aumentam a quantidade desse neurotransmissor e intensificam a atuação do sistema serotoninérgico, ligado à regulação de sensações, emoções, humor, faculdades cognitivas e motoras. A atividade do córtex pré-frontal – região dedicada a processamentos complexos relacionados a sentidos e sensações, pensamentos, sentimentos, atenção, tomadas de decisão e comportamento – é intensificada, enquanto a amígdala, responsável por emoções e reações de prontidão na luta por sobrevivência, como medo e agressividade, é reduzida.
Numa síntese pode-se dizer que o potencial terapêutico dos psicodélicos decorre da sua capacidade de gerar estados e processos neuronais, emocionais e cognitivos que permitem aos pacientes alterar padrões estagnados de processamento de ideias e memórias, percepções, crenças e narrativas recorrentes e dolorosas sobre si mesmos e sobre a vida. Quando bem- sucedida, essa renovação mental e afetiva se associa a flexibilização de comportamentos enrijecidos, propiciando mudanças profundas e duradouras.
As drogas psicodélicas são uma classe de substâncias psicoativas que alteram a percepção, a cognição e as emoções. Elas são caracterizadas por sua capacidade de induzir estados alterados de consciência, frequentemente acompanhados por experiências sensoriais vívidas e padrões de pensamento alterados. Não é incomum experiencias de caráter místico.
“A categorização dessas substâncias tem sido disputada por perspectivas contrastantes a respeito das suas propriedades. Numa visão focada em efeitos adversos, elas são classificadas como “alucinógeno”: algo, portanto, que distorce, falseia, engana e confunde. Já a etimologia da palavra “psicodélico” sugere algo praticamente oposto. O termo nasceu, na década de 1950, pela associação de duas palavras gregas que juntas significam manifestação da psique ou alma – indicando sobretudo potencial para experiências de autoconhecimento”. Flavia Lobo IEPA.
As drogas psicodélicas atuam principalmente no sistema serotoninérgico do cérebro, especialmente nos receptores 5-HT2A, o que leva a um aumento na percepção sensorial e emocional. A pesquisa psicodélica nas últimas duas décadas indica os seguintes potenciais terapêuticos de algumas substâncias mais investigadas e usadas pela psiquiatria:
Os psicodélicos são parte cultural, religiosa e histórica de povos originários do mundo todo. Do ponto de vista da seu uso pela cultura ocidental urbana, tudo tem início ainda no século 19. No prólogo do seu último livro “Mescalina – a história global do primeiro psicodélico” (New Haven: Yale University Press, 2019), o escritor e historiador da cultura, Mike Jay, inicia o seu relato pela “manhã ensolarada” do dia 3 de maio de 1953, em Los Angeles (EUA), quando o escritor e ensaísta britânico, Aldous Huxley (1894-1963) recebeu das mãos do psiquiatra Humpry Osmond (1917-2004) um comprimido contendo 250mg de mescalina, que vinha introduzindo a intelectuais e artistas proeminentes a mescalina com a finalidade de empregar essas “ferramentas de expansão da mente” de modo seguro e terapeuticamente viável. Nos Estados Unidos, o médico Silas Wier Mitchell (1829-1914), um dos pais da neurologia moderna, tomou conhecimento dos “botões de mescal” em 1895. No ano seguinte, publicou no British Medical Journal as impressões de sua experiência com o cacto. Na Inglaterra, o médico britânico Havelock Ellis (1859-1939) entrou em contato com o peiote, e dois anos depois, publicou suas experiências com o peiote. Durante os anos vinte, do ponto de vista exclusivamente acadêmico, os trabalhos mais relevantes com a mescalina envolveram grupos de pesquisadores sediados nas Universidades de Heidelberg (Alemanha) e Chicago (EUA), sob a liderança de Kurt Beringer (1893-1949) e Heirinch Klüver (1897-1979). Assim como os seus antecessores, ambos tomaram parte dos experimentos por eles mesmos desenhados, descrevendo suas sensações e percepções em busca de padrões cognitivos e visuais capazes de favorecer insights e de funcionar como uma ferramenta de exploração do psiquismo. Nos anos trinta, pelo menos até a eclosão da II Guerra Mundial, houve uma grande profusão de experimentos decorrentes do contato entre neurologistas, psiquiatras, psicólogos e artistas do surrealismo. Os encontros entre Walter Benjamin e o psiquiatra Fritz Fränkel (Berlim, 1934) e entre os amigos de infância Jean-Paul Sartre e o psiquiatra Daniel Lagache (Paris, 1935) marcaram assim a “pré-história” da psicodelia.
Os efeitos neurobiológicos das substâncias psicodélicas e envolvem interações com vários sistemas neurotransmissores no cérebro, especialmente o sistema serotoninérgico. A serotonina é um neurotransmissor crucial que desempenha um papel significativo na regulação do humor, emoções, cognição e diversos processos fisiológicos.
Os psicodélicos atuam principalmente nos receptores de serotonina, em particular o subtipo 5-HT2A, amplamente distribuído no cérebro, incluindo áreas associadas à consciência, percepção e emoção. Eu listaria cinco principais mecanismos de ação destas drogas sobre o cérebro:
A principal diferença entre psicodélicos e medicamentos psiquiátricos convencionais reside em seus mecanismos de ação e na natureza de seus efeitos:
A vasta documentação cientifica, rigorosamente fundamentados em metodologias rigorosas, vem gerando novos protocolos de tratamento e pesquisa. Alguns desses protocolos produziram resultados tão expressivos que receberam o selo “terapia revolucionária” (breakthrough therapy) da mais conhecida agência regulatória de fármacos do mundo, a Food ande Drug Administration (FDA) dos EUA. Já foram admitidos nessa categoria, dois protocolos terapêuticos com psilocibina para o tratamento de formas graves de depressão.
Abaixo estão algumas condições de saúde mental para as quais os psicodélicos têm mostrado promissor potencial terapêutico:
Depressão e Transtornos de Ansiedade
Transtorno do Estresse Pós-Traumático (TEPT)
Aflição no Fim da Vida
Nos últimos anos, houve um ressurgimento de interesse no potencial terapêutico dos psicodélicos, o que levou a inúmeros ensaios clínicos e estudos de pesquisa. Essas investigações forneceram insights valiosos sobre a segurança e eficácia das terapias assistidas por psicodélicos para diversas condições de saúde mental. Aqui estão algumas descobertas-chave de ensaios clínicos recentes:
Depressão e Transtornos de Ansiedade:
Vários ensaios clínicos demonstraram que a terapia assistida por psilocibina pode levar a reduções significativas nos sintomas depressivos e de ansiedade em indivíduos com depressão resistente ao tratamento e outros transtornos de ansiedade.
Estudos de acompanhamento de longo prazo indicaram que os efeitos da terapia assistida por psilocibina podem persistir por vários meses ou até anos após o tratamento, sugerindo um benefício sustentado.
Transtorno do Estresse Pós-Traumático (TEPT):
Ensaios clínicos explorando a terapia assistida por MDMA para o TEPT têm apresentado resultados promissores, com uma redução significativa dos sintomas e melhoria geral do bem-estar nos participantes do estudo.
Esses estudos mostraram que o MDMA pode fomentar a confiança e aprimorar a aliança terapêutica entre pacientes e terapeutas, permitindo uma exploração e processamento mais profundos das memórias traumáticas.
Transtornos por uso de substâncias:
Ensaios clínicos investigando o uso de psilocibina e outros psicodélicos no tratamento de transtornos por uso de substâncias, como a dependência de álcool e tabaco, têm relatado resultados encorajadores.
Esses estudos sugeriram que a terapia assistida por psicodélicos pode ajudar os indivíduos a romper padrões aditivos, reduzir os desejos compulsivos e melhorar sua motivação para mudar.
Aflição no fim da vida:
Pesquisas clínicas envolvendo psilocibina em pacientes com doenças potencialmente fatais têm mostrado que uma única sessão orientada pode levar a reduções significativas na ansiedade e depressão, além de aumentar a aceitação do fim da vida.
Em termos de estrutura, investimento, visibilidade, amplitude e qualidade de pesquisa, dois centros precisa ser mencionados. O Centro de Pesquisa em Psicodélicos do Imperial College de Londres e o Centro de Pesquisa sobre Psicodélicos e Consciência da Universidade Johns Hopkins, nos EUA. O Imperial College foi o primeiro a utilizar modernas tecnologias de geração de imagens cerebrais para investigar os efeitos do LSD e foi pioneiro no estudo da psilocibina para tratamento de depressão severa. Atualmente desenvolve várias linhas de pesquisas que o mantém como referência no cenário da ciência psicodélica. Em 2021, em outra iniciativa pioneira, começou um teste clínico com DMT para o tratamento de transtorno depressivo maior.
As aplicações terapêuticas dos psicodélicos, que podem ser vistas no Centro da Johns Hopkins, incluem tratamentos da depressão, da ansiedade, do transtorno de estresse pós-traumático, da adição e dependências químicas, do Alzheimer e anorexia. No final de 2020, um estudo dessa instituição sobre a eficácia da psilocibina utilizada em um protocolo terapêutico para o tratamento de depressão foi amplamente noticiado no Brasil em razão da expressividade dos resultados.
Além destes dois centros monumentais para a ciência, temos outros importantes núcleos de pesquisa de drogas psicodélicas que merecem destaque. Eles são:
Quantos aos ensaios clínicos de pesquisa em andamento atualmente, gostaria de mencionar os seguintes:
Diversos ensaios estão investigando a segurança e eficácia da terapia assistida por MDMA para o transtorno do estresse pós-traumático (TEPT) em veteranos e socorristas norte-americanos. Esses estudos visam obter aprovação regulatória para o MDMA como medicamento prescrito para o TEPT.
Ensaios clínicos estão examinando os efeitos da terapia assistida por psilocibina em indivíduos com depressão resistente ao tratamento psiquiátrico convencional, transtornos de ansiedade e angústia existencial relacionada a doenças terminais.
Estudos estão avaliando o potencial da psilocibina, ayahuasca no tratamento da dependência de substâncias como álcool, nicotina e opioides.
Pesquisas em andamento exploram o uso de psicodélicos para aliviar a angústia no fim da vida, ansiedade existencial e depressão em pacientes com doenças terminais.
Pesquisadores estão conduzindo estudos de neuroimagem para entender os mecanismos neurais subjacentes aos efeitos terapêuticos dos psicodélicos e como eles afetam a função e conectividade cerebral.
Pesquisadores e instituições brasileiras têm sido pioneiros no campo do renascimento psicodélico. Na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), sob a orientação do Dr. Dráulio Araújo, estudos rigorosos têm sido conduzidos sobre os potenciais terapêuticos da ayahuasca no tratamento da depressão.
Em 2018, esses estudos resultaram em um ensaio randomizado com controle de placebo, que se tornou um marco no avanço da ciência psicodélica internacionalmente. Além disso, ao longo dos anos, o grupo tem produzido e publicado diversos estudos importantes.
Em 2019, uma pesquisa liderada por Sidarta Ribeiro, outro neurocientista da UFRN, e Stevens Rehen (UFRJ e Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino), apresentou resultados revolucionários sobre o LSD. Esses resultados indicaram o potencial dessa substância para aumentar a aptidão cognitiva e retardar o declínio mental causado pelo envelhecimento.
O Brasil tem visto um crescente número de pesquisadores e instituições se destacando nesta área. Uma busca no catálogo online da Capes utilizando o termo “ayahuasca”, por exemplo, revela a existência de 142 dissertações de mestrado e 44 teses de doutorado abordando o tema, mostrando que o chá amazônico é o objeto central da maioria desses trabalhos.
No campo do empreendedorismo psicodélico, há iniciativas brasileiras em andamento. Um exemplo é o Instituto Phaneros, uma ONG liderada pelo neurocientista Eduardo Schenberg, que oferece cursos para estudantes e profissionais da área da saúde interessados em aprender sobre psicodélicos e os modelos de aplicação clínica dessas substâncias.
Schenberg é também responsável por incluir o Brasil no panteão da pesquisa internacional por testar o protocolo terapêutico da MAPS (Associação Multidisciplinar de Estudos Psicodélicos nos EUA), que utiliza a psicoterapia assistida por MDMA no tratamento de portadores de TEPT (Transtorno do Estresse Pós-traumático). Recentemente Schenberg anunciou novos ensaios clínicos envolvendo uma grande amostra de 300 pacientes, que certamente contribuirá para o aprofundamento do uso dos psicodélicos como escolha viável e importante para certos adoecimentos.