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Com a palavra a ciência

A imperfeição é phoda!

A ladainha do perfeccionismo e da auto-superação é atraente e perigosa. Nos meados do século 20  a educação, a religião e a economia convergem em torno de uma ideia comum – a prosperidade  depende exclusivamente de você. Você deve fazer tudo para se sobressair, bater seus limites  constantemente para ser notado. Assim criou-se a fórmula contemporânea mágica para o sucesso,  estritamente pessoal. Esse enredo cria uma miséria sólida mas que não pode ser exposta, ela se  gruda impiedosamente em nossa pele existencial como uma gosma translúcida. Ninguém a vê, mas  ela está lá. Nossos jovens estão sendo arrastados para o fosso profundo do sofrimento mental pela  força destes princípios neoliberais, de meritocracia e da teologia da prosperidade, que associam o  sucesso e o fracasso unicamente à vontade individual e da fé. O sofrimento mental no jovem cria as  condições ideais para um adulto simplesmente muito doente, isto é, quando eles não se matam  antes. Segundo a OMS, o suicídio é hoje a segunda causa de morte entre jovens e crianças – a  grande maioria do sexo masculino. Nesse panorama existencial, do qual as conexões sociais tão  importantes para nossa regulação emocional e saúde foram retiradas, como nos proteger? 

SER PERFEITO E DIVINO NÃO TÁ NADA RENTÁVEL  

Houve um tempo em que as pessoas se juntavam para ajudar alguém, fosse para estudar, fosse para  abrigar ou trabalhar. O provérbio africano “it takes a village to raise a child” explica de forma poética  esse costume. A gente sabe que, de um lado, a solidariedade coletiva é a responsável por estarmos  aqui do ponto de vista evolutivo, e por outro, não menos importante, ela é também a protetora solene  do gigante legado social e cultural humano, sobre cujos ombros colocamos nossos pés para vermos  mais longe. Mas, tem algo acontecendo na nossa sociedade. Desde os meados do século passado  o eixo do coletivo se movimenta ao seu extremo oposto, o individualismo, e não por acaso isso  coincide com o fortalecimento da teologia da prosperidade e do neoliberalismo. Tudo isso ganhou  ainda mais dramaticidade com pandemia da covid-19. Quanta coisa, e como entender esse cenário?

O esforço individual, a fidelidade pessoal à deus e à igreja como fontes de garantia do sucesso  pessoal, alicerçados na pregação triunfalista do sacrifício pessoal para ser bem sucedido, se alinha  de forma útil à cultura da vida vitoriosa medida pela capacidade do alto consumo e das posses e  bens de uma pessoa. A escola não ficou de fora. Motivada pelo ideal neoliberal da eficiência, do  desempenho e da rentabilidade, ela se empenha e oferece a todos um modelo prêt-à-porter de  educação, que se incumbe do essencial nessa fórmula mágica: construir desde cedo uma nova  subjetividade na criança que a transformará num indivíduo empreendedor e gestor de si mesmo.  Porque, afinal, assim como o sucesso só depende mesmo da pessoa, a causa do fracasso só pode  estar nela mesma. Ou ela resolve ou dane-se! 

Só que isso está dando errado. Olhando para a fila de bençãos nas igrejas da teologia da  prosperidade a gente vê mulheres (58%), negros ( 59%) e pobres ( 50% ganham até dois salários  mínimos), e quase todos só com o ensino médio (84%) segundo o data folha de 2020. Nossa  sociedade é desumanamente desigual, e nela há muito mais cristão e não cristão pobre do que ricos  e todos, inclusive os ricos, muito doentes. Os fieis pobres com fé ardente continuam apostando na  riqueza de suas igrejas, o tempo passa e eles continuam a morrer pobres e doentes. Assim como a  estudante Maryana Melo de 18 anos se sente nesse desabafo: “Disseram que eu precisava ter  experiência profissional. Mas como vou ter, se não me dão uma chance?” estão outros 22,8% de  jovens desempregados segundo o IBGE. Um cenário muito pior do que há uma década quando eles  eram apenas 15,3%. Parece haver um fato incontornável nisso tudo – apesar de toda fé e esforço, a  maioria está bem longe do sucesso e muito mais íntima da miséria. Essa pressão permanente pelo  sucesso, pela perfeita dedicação a si e ao divino, o perfeito auto-gerenciamento das mazelas e limites  está extinguindo a vitalidade, a saúde mental e a vida humana.  

A IMPERFEIÇÃO É PHODA  

Estamos sofrendo e morrendo de forma muito desumana e desamparada. No Brasil, o suicídio entre  jovens negros é 45% maior do que entre brancos e somos o pais líder em ansiedade do mundo. Nos últimos 20 anos temos visto doenças degenerativas decorrentes do estresse tóxico gerado por  esse estilo de vida, como câncer, Alzheimer, diabetes, doenças coronarianas dentre outras, matarem  mais de 70% população. Durante a pandemia vimos crescer ainda mais a dor física e a dor social ao  lado da sempre crescente exigência de esforço de superação pessoal contra a falta de tesão pela  vida, falta de motivação e esperança, a força do viver foi minguando.  

O que fazer? Tomar remédio para continuar funcional? Se entupir de tratamentos para dormir, para  acordar, para ter libido, para comer, para digerir, para o coração, para a pressão, para a glicose, para  emagrecer? Fazer coaching, buscar auto-ajuda nos gurus do empreendedorismo? Se drogar? Ser  um homem valente e uma mulher guerreira? Minha nossa, não! 

Que tal começar pelo que foi sempre essencial para nós humanos em momentos de crise? Que tal  começar no coletivo mais uma vez, e sorver o elixir valioso que brota da conexão social? Primeiro,  ninguém está sozinho nessa miséria. Quando você se abrir para o outro, vai encontrar pessoas  que sentem como você, ou mesmo até bem pior. Muitas vezes é difícil expressar o quão vulnerável e  imperfeito a gente se sente por medo da dor social, em outras palavras, medo da rejeição, vergonha  e constrangimento pelo fracasso, afinal uma pessoa assim não vale nada na sociedade de consumo  que ora orbitamos. Mas, a gente nunca deve subestimar a força dos nossos laços afetivos que  tem poder de apaziguar e aconchegar nossa necessidade de proteção, e isso nos relaxa. Sim,  relaxar é fundamental! Quando você permite essa conexão com quem te acolhe, e não teme expor  suas vulnerabilidades e imperfeições, acontece uma liberação de duas vias. Não apenas você se  fortalece, mas sua atitude dá força aos outros para serem imperfeitos também. Este não é um 

encontro pautado para encontrar soluções, te colocar funcional e produtivo. A solução aqui é você  simplesmente descansar e se aceitar, confiando que nessa troca de escuta surge a compreensão.  Isso produz um extremo conforto e relaxamento. Soluções boas só podem vir desse estado de não  toxicidade. Quando derrubamos o muro da perfeição e saudamos a imperfeição, ali reconhecemos  nossa humanidade.  

Essa empreitada depende de muitos e o que nos recarrega de força para fazer essa tão necessária  travessia é justo aquilo mais detestável na sociedade neoliberal de consumo e nos altares da teologia  na prosperidade, a imperfeição.  

Sim, a imperfeição é phoda!

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