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Com a palavra a ciência

O fetiche da felicidade nos relacionamentos

Desconstruir a ideia pueril que associa um relacionamento bom à ausência de conflitos, de incômodos e dores é importante. Nem todo conflito é bom para um relacionamento, nem por isso é bom um relacionamento sem conflito.
A busca neurótica pela felicidade, com recusa a qualquer sentimento de dor, frustração, tristeza, reduz a compreensão sobre nós mesmos e o mundo e nos impede de adquirir virtudes para lidar com a complexidade das conexões. A intolerância pela adversidade, fruto desse estilo de vida, cumprirá um papel doloroso inevitavelmente quando, ao final, o peso da realidade nos encara e força sua entrada em nossas pálidas e macilentas entranhas emocionais.

A ideia é simples. Quando nos misturamos ao outro na relação (qualquer relação), e veja que não o fazemos só pelo corpo, mas também pelas ideias, pela fantasia, pelo desejo, pela visão de mundo, necessariamente haverá conflitos porque não somos plasmados na mesma incubadeira. A natureza
desse conflito é a própria subjetividade, essa haute couture que veste cada um sob medida e exclusivamente.

Seria ingênuo supor que a boa conexão humana esteja sujeita apenas a ventos bons, e associar a ideia de felicidade à ausência de tropeços e contradições nas relações, porque isso reduziria tudo em nossas vidas, inclusive a felicidade. Dessa maneira, quantas conexões não se perderam e quantos relacionamentos não são interrompidos no momento em que mais poderiam se fortalecer, só porque atravessavam uma zona de tempestade? Será mesmo que o ser humano pode construir relações fortes e profundas apenas com a premissa de felicidade perpétua?
O fetiche da felicidade, ideia central da sociedade neoliberal, tem na psicologia positiva tentáculos para criar pessoas para a felicidade e não felicidade para as pessoas, como aponta Spencer Júnior. A fuga de suas angústias e do que há de naturalmente trágico na vida, ora correndo às compras ou se entupindo de venenos, ora buscando a superação sem fim de limites através de técnicas de auto gerenciamento, infantiliza a experiência humana e põe fim na ideia de relacionamentos profundos. Quando a pessoa só se ocupa em ser feliz, a felicidade passa a ser mais importante que a própria vida.

A conexão humana é rica porque aproxima, mistura, celebra e permite a diferença, e daí nos desloca. O deslocamento é fundamental para a construção de nossos relacionamentos, simplesmente porque ele permite outro ângulo, inaugural e desafiador, novos embaralhamentos que chegam com novos territórios e seus tempos, suas tempestades e calmarias. O espaço para mudança é mais rico no relevo da contradição, justo por servir como força de deslocamento. O desafio de um relacionamento maduro está no compreender e permitir a divergência emanada da subjetividade. Cada um carrega seu mundo no emaranhado da relação. Esses mundos não se dissolvem ou se anulam, ao contrário, eles precisam se confirmar e se transformar no correr da conexão.

Por isso que a pergunta não é exatamente se eu sou feliz, mas se eu estou viva! Estar viva, em mim, fora de mim, no essencial, no inútil, na alegria, na frustração, confrontada e logo submersa, ensimesmada até que pronta para emergir e para trocar. O relacionamento confronta minhas verdades e me leva para a esquina da minha confiança, me abraça, me empurra para o outro lado, onde eu vago sem saber, mas curiosa, com desconforto, mas curiosa. Eu vago ora temerosa, ora com raiva, ora com paixão, ora com devoção, ora aberta, ora recolhida.

A felicidade é experimentada no vagar pelos espaços que me permitem os emaranhados. Assim descubro que sou feliz por ter a força vital que me permite vagar pelos caminhos abertos no relacionar.

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